10 maio 2011

o torto soalho da casa europeia

in Público, 9/5/11

Conteúdo e contexto
Rui Tavares *

A discussão sobre se o acordo com a troika é “bom” ou “mau” para nós, segue previsivelmente todos os passos dos nossos previsíveis debates domésticos. Antes de nos perguntarmos se os senhores estrangeiros nos trataram bem ou mal, como nós merecíamos ou não, será pedir muito que abandonemos por momentos a nossa subalternidade e que nos atribuamos o direito de analisar o trabalho da troika?

A primeira pergunta seria então: é este acordo realista ou irrealista? Valerá a pena espancar a nossa economia para a pôr na forma estipulada? Já o tentámos com os vários PEC, tal como a Grécia e Irlanda tentaram com os seus resgates, e o resultado foi pior do que o estado inicial. Se este acordo falhar, que se seguirá então? Mais espancamentos?

Espancar a economia significa, é bom lembrar, espancar indiretamente as pessoas. Cortar-lhes nos salários, aumentar-lhes os transportes, diminuir-lhes as redes de segurança em caso de desemprego ou doença, cortar-lhes os sonhos na educação ou no ensino superior, cada vez mais caro. Fazê-lo sem certeza dos resultados está na fronteira entre a futilidade e a crueldade.

Para analisar o acordo, precisamos de olhar para o conteúdo e para o contexto. 

No conteúdo, o acordo é duro, duríssimo até, mas levemente menos irrealista nas previsões do que nos casos grego e irlandês. Com dois fracassos no saco, a troika admite à partida uma recessão prolongada, e dá-nos mais um ano para atingir os objetivos convencionados. 

quadro de Botero
A partir daí, o contexto é que é determinante — e o contexto está todo errado, condenando a prazo o exercício. Na verdade, nada do que fizerem Sócrates ou Passos Coelho poderá mudar o facto de que é o euro que está em crise. Dilacerantes eventos se anunciam para a moeda única nos próximos tempos. Há estranhas reuniões secretas, depois confirmadas. Na agenda estaria a saída da Grécia — depois negada. Basta uma reestruturação da dívida para que a crise chegue à Espanha.

As nossas culpas (e são muitas: um país desigual, uma elite predadora, uma estrutura fiscal desonesta) toldam-nos a vista de tal forma que não nos deixam ver esta diferença entre conteúdo e contexto, com prevalência para o segundo. Talvez uma metáfora ajude. 

O que nos sugerem que façamos às contas portuguesas, e por extensão à nossa economia e sociedade, é o equivalente a pedir-nos que arrumemos os pratos de outra maneira no armário. Vamos esquecer por momentos se concordamos ou não com a nova arrumação: isso é o conteúdo.

O problema é que o soalho da casa está torto. O soalho é a zona euro. Quanto mais se entorta mais impossível fica arrumar o nosso armário. Na sala há 16 armários, alguns exercendo um peso sobre o soalho que faz afastarem-se as tábuas onde deveríamos pôr os pés. Os planos de há seis meses já não resolvem os problemas de agora, e os planos de agora arriscam-se a piorar os problemas de daqui a seis meses.

É que entretanto já não é só o soalho que está torto. As vigas do teto afastam-se, as paredes perdem o prumo. A casa é a União Europeia, e os seus pilares são o euro, Schengen, a estratégia 2020 (meu Zeus, onde já vai ela...) — todos em crise. Os alicerces da casa estão sobre um pântano de bancocracia e indecisão política.

A casa é o contexto. Vai ser preciso refazer-lhe os pilares, que deveriam passar a ser: coesão, integração, solidariedade e crescimento (ou emprego). E reconstruir tudo sobre o terreno firme da democracia. Enquanto isto não for feito andaremos correndo à volta do armário, apontando histericamente uns para os outros, enquanto tudo se quebra lá dentro. 

*Historiador.
Deputado independente ao Parlamento Europeu pelo BE (http://twitter.com/ruitavares); 
a pedido do autor, este artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico

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