Santana Castilho *
A campanha eleitoral para a presidência da República foi pouco esclarecedora e lamentavelmente decepcionante. Não foi nobre o processo pelo qual os mascarados do costume trouxeram a escrutínio passagens menos edificantes dos negócios de Cavaco Silva. Mas foi deprimente a forma como o candidato, presidente presente e presidente futuro, lhes respondeu. Sem decoro, o ministro do malhanço, que não deixou de ser da Defesa, atiçado pelo animal feroz, que continua primeiro-ministro, zurziu sem elegância o candidato que ainda era presidente da República e chefe máximo das forças armadas. O eleito respondeu-lhe, enviesado e rancoroso, num discurso que devia ser de vitória e acabou em perda, particularmente quando apelou para que os jornalistas denunciassem as fontes das notícias que o incomodaram. O mesmo Cavaco que se desagradou com o comportamento lamentável do Diário de Notícias, aquando das escutas de Belém, exortou agora ao mesmíssimo remexer na lama que então manchou a honra e a ética do jornalismo sério. Tão clara e indiscutível como a vitória que as eleições lhe conferiram foi a sua queda do pedestal onde os indefectíveis o colocaram. O flop do cartão maravilha, que sonegou a milhares o direito mais sagrado da democracia, foi branqueado com um suave pedido de desculpas às portuguesas e aos portugueses e dispensa de penitência redentora. Mas, em compensação, os comentários produzidos sobre as eleições presidenciais foram criativos e trouxeram-nos de tudo: todos a ganhar e todos a perder; uma abstenção esmagadora ou cadernos eleitorais enganadores; uma vitória de Cavaco Pirro ou o sucesso do Professor Doutor Nulo Branco.
A abstenção, os votos nulos e os votos brancos tiveram as maiores expressões de sempre. Se estes dois últimos contassem e se somassem às cinco candidaturas derrotadas, teríamos tido uma segunda volta. Confrontando os resultados das eleições presidenciais de 2006 com os das de 2011, vemos que Cavaco Silva perdeu 530 mil votos e Manuel Alegre 298 mil. Os votos nulos duplicaram de 2006 para 2011. E os brancos mais que triplicaram. Ora estes votos exprimem inequivocamente um protesto cívico, na medida em que são uma explícita declaração de não adesão a nenhum dos candidatos propostos. É significativo que 278 mil portugueses se tenham dado ao incómodo de se deslocarem às urnas para assim votarem. Volta a ser significativo que 189 mil tenham subscrito o discurso bizarro de José Coelho. Qualquer político ou cidadão consciente não pode deixar de reflectir sobre o que tudo isto evidencia de protesto e de desinteresse. E talvez fosse tempo de acolhermos, em sede de legislação eleitoral, o significado do fenómeno, melhorando o modelo da nossa representatividade.
Olhando para a nação no rescaldo das eleições, vejo-a partida: de um lado, os que não acreditam no regime e nos políticos que o representam; do outro os afectados pelo sindroma de D. Sebastião, aparentemente incapazes de viver sem uma sombra tutelar. Rei aos três anos, tutelado pela avó até aos 14, vítima de grave disfunção sexual desde os 11, fundamentalista religioso, pobre de cabeça e de saúde, lunático e inebriado pela corte incapaz, hipócrita e bajuladora, D. Sebastião finou-se sem glória em Alcácer Quibir e arrastou para a morte milhares de seguidores. Mas D. Sebastião, em vez de obstinado, lunático, fundamentalista, irresponsável e impotente, chegou até hoje como um icónico desejado. Os 37 anos de democracia não apagaram a tendência do povo para se curvar a líderes paternalistas. Cavaco Silva é deles um ícone. Mas, acabada a festa, é desejável que se caia no real.
A Providência é uma sabedoria suprema com que Deus dirige tudo. Se ele existe, é dele a Providência, não dos homens. Nenhum homem providencial resolverá os problemas de Portugal, cuja solução reclama a participação de todos. O que pode ser providencial é a missão dos que se sigam no Governo, se tiverem a capacidade de envolver os portugueses na solução dos problemas do país.
Disse-se que vivemos nos últimos meses constitucionalmente tolhidos por umas eleições que se sabiam ser de continuidade. Mas tolhidos já vivemos há muito: tolhidos pelos interesses particulares que se apossaram do Estado; tolhidos pela crescente dependência financeira do exterior; tolhidos pela incompetência de quem manda; tolhidos pela corrupção crescente e pela justiça ineficiente; tolhidos por uma administração pública que não se reforma e por uma economia que não cresce; tolhidos por decretos maliciosos, por fiscalidade desleal, pela desconfiança generalizada num Estado saqueador. Nenhuma magistratura activa nos libertará do que nos tolhe, sem que se remova a desconfiança que hoje separa a sociedade dos responsáveis políticos. Sem isso, sem a mobilização cívica de novos protagonistas, nenhum velho imaginário pátrio nos salvará.
É um lugar-comum, mas é falso, dizer que estas eleições nada tiveram com a governação. Tiveram. Quando o pano caiu sobre elas, encerrou-se definitivamente o ciclo da governação do PS. A mobilização cívica de que falo tem agora um protagonista: Pedro Passos Coelho. Sócrates, nas vascas da morte, vai estrebuchar até ao fim. Já anunciou uma nova oportunidade para as bafientas Velhas Fronteiras. Pedro Passos Coelho, sem pressa e bem de chegar ao Governo, deve ser lesto a mobilizar o país e a apresentar um programa. A hora é de iniciativas.
* Professor do ensino superior
a imagem é de Marcel Duchamp, do movimento Dada
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