01 setembro 2010

É fácil malhar nos professores

um artigo de Santana Castilho:

A crise económica e financeira que nos assola não é um fenómeno da natureza. É consequência de decisões políticas. Umas, porque somos uma pequena economia aberta dependente daquilo que os outros fazem, escapam ao nosso controlo. Outras podem ser directamente actuadas por nós. Está neste caso o equilíbrio entre o que gastamos e o que produzimos. É pois natural que a discussão à volta de como cortar despesa seja uma discussão importante. Mas, para que seja construtiva, deve ser servida por informação isenta, completa e esclarecedora.

Li no Jornal de Negócios de 24 de Agosto: "A despesa do Estado não pára de crescer, apesar de o ano ser de consolidação orçamental. E cerca de um terço deste crescimento - que atingiu os 3,8% em Julho - vem da educação, em parte devido à melhoria das remunerações de professores, no seguimento do processo de avaliação."
Este naco de prosa e o que segue no desenvolvimento da notícia é assassino para os professores, no contexto dos sacrifícios que o povo suporta. Vejamos porquê. Comecemos por ir à fonte, um boletim mensal editado pela Direcção-Geral do Tesouro, intitulado Síntese da Execução Orçamental, referente a Agosto. Na página 9 está explicado que o aumento de 3,9 por cento das "despesas com pessoal" do Estado se deve ao aumento de duas rubricas: "remunerações certas e permanentes", que não cresceram 3,9 por cento mas apenas 1,6 por cento, e "segurança social", que cresceu 15,7 por cento. Assim, a "melhoria das remunerações dos professores, no seguimento do processo de avaliação", devia ser conotada com 1'6 por cento e não 3,9 por cento. Ganharia o rigor. Mas ainda ganharia mais rigor se a notícia esclarecesse, como devia e consta do documento que lhe serviu de base, que o aumento de 1,6 por cento se ficou a dever, para além da aludida parte dos professores, "à implementação dos novos sistemas remuneratórios das forças de segurança e dos militares" e à "contratação extraordinária de pessoal a termo e em regime de tarefa ou avença pelo Instituto Nacional de Estatística" (sic, publicação citada, p.9). Isto é: os 3,9 são, afinal, 1,6 e os 1,6 são repartidos por militares, forças de segurança, INE e professores. Mas a notícia só fala de professores. Feita a desagregação da despesa, como importaria o rigor, a montanha pariria um ratito.

E se fôssemos mais além e comparássemos, não o actual momento com o período homólogo de 2009, mas o que ganhavam os professores antes de Sócrates, em termos reais, com aquilo que hoje ganham, então só poderíamos concluir que, exceptuando a chaga dos desempregados, são eles a classe mais penalizada. Viram salários congelados, carreiras congeladas e degradadas e tempos de trabalho aumentados. Regrediram em toda a linha. Estou disponível para discutir e provar o que afirmo a quem quiser, jornalista, articulista, economista, políticos e outros. E esclareço que não me movem corporativismos, já que é outro o meu subsector de ensino. Move-me a justiça. E move-me o interesse nacional, porque é esse interesse que cede cada vez que se beliscam injustamente os professores.

Mas o rigor ainda suscita outras considerações. Tenho à minha frente o Orçamento do Estado para 2010. É um grosso volume com 736 páginas. Abro-o na 312 e cito o que lá está: "... A despesa consolidada do Ministério da Educação (MEDU) atinge o montante de 7275,7 milhões de euros ... Face à estimativa da despesa do ano de 2009, o orçamento do MEDU representa um acréscimo de 0,8%, acréscimo que se verifica ... sobretudo nas dotações específicas para o Ensino Particular e Cooperativo e para a Educação Pré-Escolar (sublinhado meu)." Quer isto dizer que quem aprovou o Orçamento do Estado de 2010 sabia que a despesa iria crescer 623,8 milhões de euros. E teimo no rigor. No documento em análise, na página 38, diz-se que a dotação orçamental da Educação foi corrigida para menos 20,6 milhões de euros. Será cumprida a correcção? Não sei, não sabemos. Mas está lá.

Os défices não são necessariamente peçonhentos. Se forem movidos por boas causas, isto é, investimento produtivo, e se estiverem controlados, isto é, se o "passivo" que representam puder ser pago pelo "activo" que os contraiu, são instrumentos de desenvolvimento e progresso. O problema do país reside na não verificação destas premissas básicas e daí a urgência em cortar despesa. Mas não se pode cortar despesa clamando esquizofrenicamente corta, corta, corta. Não chega. É preciso dizer onde e mostrar que se conhecem os cenários de consequências, negativas e positivas. Este era um belo trabalho de investigação jornalística que o Jornal de Negócios poderia promover, em vez de malhar nos professores. Deixo-lhe exíguas pistas:
  • Quanto se gastou, e com que resultados, nos programas de modernização tecnológica das escolas? Só os últimos portáteis a entregar a crianças que deles não necessitam importam em 50 milhões de euros. 
  • Quanto custou até agora cada metro quadrado reconstruído pela Parque Escolar? 
  • Quanto custam a avaliação do desempenho e a gestão das escolas, que destruíram a estabilidade dos professores? 
  • Quanto custa cada aluno dos mais que polémicos Cursos de Educação e Formação (CEF) e Cursos de Educação e Formação para adultos (EFA)
  • Quanto custaram o Plano de Recuperação da Matemática e todos os outros que se criam porque o que devia funcionar não funciona?

in Público, 1/9/2010

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