13 junho 2011

porque ..

.. assim me perco de mim ..

A Lucidez Perigosa
de Paula Rego

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me aconteceu antes.

Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade -
essa clareza de realidade
de Helena Almeida
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.

Clarice Lispector

*

Estou vivo e escrevo sol

Eu escrevo versos ao meio-dia
e a morte ao sol é uma cabeleira
que passa em fios frescos sobre a minha cara de vivo
Estou vivo e escrevo sol
Se as minhas lágrimas e os meus dentes cantam
no vazio fresco
é porque aboli todas as mentiras
de Artur Bual
e não sou mais que este momento puro
a coincidência perfeita
no acto de escrever e sol
A vertigem única da verdade em riste
a nulidade de todas as próximas paragens
navego para o cimo
tombo na claridade simples
e os objectos atiram suas faces
e na minha língua o sol trepida
Melhor que beber vinho é mais claro
ser no olhar o próprio olhar
a maraviha é este espaço aberto
a rua
um grito
a grande toalha do silêncio verde


António Ramos Rosa
de Estou Vivo E Escrevo Sol (1966)

*
de Graça Morais

Vontade de dormir

Fios de oiro puxam por mim
a soerguer-me na poeira —
Cada um para seu fim,
Cada um para seu norte...

— Ai que saudade da morte...

Quero dormir... ancorar...
Arranquem-me esta grandeza!

— P’ra que me sonha a beleza
Se a não posso transmigrar?...

Mário de Sá-Carneiro 

*

Invento

Deponho
de Vieira da Silva
suponho e descrevo
a pulso

subindo pela fímbria
do despido

Porque nada é verdade
se eu invento
o avesso daquilo que é vestido


Maria Teresa Horta


todos os poemas retirados do site  As Tormentas

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