dossier | 4 Junho, 2010
A Grécia é um microcosmo de uma guerra de classes moderna que é raramente relatada como tal e que é combatida com toda a urgência do pânico entre os ricos imperiais. Por John Pilger
Enquanto a classe política britânica finge que é democracia o seu casamento negociado dos conservadores com os liberais-democratas, a inspiração para o resto de nós é a Grécia.
Não é de admirar que a Grécia seja apresentada não como um farol mas como um “país-lixo”, que teve o que merecia devido ao seu “inchado sector público” e à sua “cultura de cortar pelos cantos” (The Observer). A heresia da Grécia é que a revolta dos seus cidadãos comuns oferece uma esperança genuína, ao contrário daquela que foi esbanjada pelo senhor da guerra na Casa Branca.
A crise que levou ao “resgate” da Grécia pelos bancos Europeus e o Fundo Monetário Internacional (FMI) é o produto de um sistema financeiro grotesco que está ele próprio em crise. A Grécia é um microcosmo de uma guerra de classes moderna que é raramente relatada como tal e que é combatida com toda a urgência do pânico entre os ricos imperiais.
O que torna a Grécia diferente é que na sua memória viva está a invasão, a ocupação estrangeira, a traição pelo Ocidente, a ditadura militar e a resistência popular. O seu povo não se deixa intimidar pelo corporativismo corrupto que domina a União Europeia. O governo de direita de Costas Caramanlis, que precedeu o actual governo do PASOK de George Papandreou, foi descrito pelo sociólogo Francês Jean Ziegler como “uma máquina para pilhagem sistemática dos recursos do país”.
A máquina tinha amigos infames. A Reserva Federal Norte Americana está a investigar o papel de Goldman Sachs e de outros operadores de fundos de risco americanos que apostaram na falência da Grécia quando os bens públicos foram vendidos e a sua evasão fiscal de 360 mil milhões de euros foi depositada em bancos suíços. Os maiores armadores Gregos transferiram as suas empresas para fora do país. Esta hemorragia de capital continua, com a aprovação dos governos e dos bancos Centrais Europeus.
Situado nos 11%, o défice grego não é superior ao défice americano. No entanto, quando o governo de Papandreou tentou pedir dinheiro à comunidade financeira internacional, foi eficazmente bloqueado pelas agências de rating (notação) americanas, que “baixaram a classificação” da Grécia até ao estatuto de “lixo”. Foram estas mesmas agências que avaliaram com triplo-A milhares de milhões dólares das chamadas hipotecas subprime, precipitando assim o colapso económico em 2008.
O que aconteceu na Grécia foi roubo a uma escala sem precedentes, embora não totalmente desconhecida. Na Inglaterra, o “resgate” de bancos como Northern Rock e o Royal Bank of Scotland custou milhares de milhões de libras. Graças ao anterior primeiro-ministro Gordon Brown e à sua paixão pelos instintos ambiciosos da City de Londres, estas dádivas de dinheiro público foram incondicionais, e os banqueiros têm continuado a pagar uns aos outros o saque a que eles chamam bónus.
Sob a monocultura política Britânica, eles podem fazer o que quiserem. Nos Estados Unidos, a situação é ainda mais marcante, conforme relata o jornalista investigador David DeGray, “como os bancos mais importantes de Wall Street que destruíram a economia pagam zero de impostos e recebem 33 mil milhões de dólares de reembolsos.”
* * *
Na Grécia, tal como na América e Inglaterra, foi dito ao povo que teria de reembolsar os ricos e poderosos das dívidas em que eles próprios incorreram. Empregos, pensões e serviços públicos são para ser cortados e queimados, sob o comando de piratas.
Para a União Europeia e o FMI, a oportunidade aponta para uma “mudança de culturas” e para o desmantelamento da segurança social da Grécia, tal como o FMI e o Banco Mundial “ajustaram estruturalmente” (empobrecendo e controlando) países por todo o mundo desenvolvido.
A Grécia é odiada pela mesma razão que a Jugoslávia teve de ser destruída fisicamente sob o pretexto de protecção ao povo do Kosovo. Muitos gregos são funcionários do estado, e os jovens e os sindicatos envolveram-se numa aliança popular que não tem sido pacífica; os tanques dos coronéis nos campus da Universidade de Atenas mantêm-se um fantasma político.
Tamanha resistência é anátema para os banqueiros centrais europeus e é considerada como uma obstrução à necessidade principal da Alemanha de capturar mercados após a sua conturbada reunificação.
Na Grã-Bretanha, tem sido tal a propaganda de 30 anos de uma teoria económica extrema inicialmente conhecida como monetarista, e depois como neoliberal, que o novo primeiro-ministro pode, tal como o anterior, descrever como “fiscalmente responsáveis” as suas exigências de que o cidadão comum pague as dívidas dos desonestos.
No que ninguém fala é sobre a pobreza e as classes. Quase um terço das crianças britânicas está abaixo do limiar de miséria. Na classe trabalhadora de Kentish Town, em Londres, a esperança de vida do homem é de 70 anos. Contudo, a cerca de três quilómetros de distância, em Hampstead, já é de 80 anos. Quando a Rússia foi submetida a uma idêntica “terapia de choque” nos anos 90, a esperança de vida caiu a pique. Um recorde de 40 milhões de americanos pobres está actualmente a receber senhas para comer: isto significa que eles não têm capacidade de pagar a sua própria alimentação.
No mundo desenvolvido, um sistema de triagem imposto pelo Banco Mundial e pelo FMI há muito que determina se as pessoas devem viver ou morrer. Quando as tarifas e os subsídios para alimentação e gasóleo forem eliminados pela ditadura do FMI, os pequenos agricultores sabem que foram declarados como dispensáveis. O Instituto de Recursos Mundiais calcula que o número de mortes de crianças por ano esteja entre os 13 e os 18 milhões. “Isto,” escreveu o economista Lester C. Thurow, “nem é metáfora nem simulação de guerra, mas guerra a valer.”
As mesmas forças imperiais têm usado armas militares horrendas contra países cuja maioria são crianças, e têm aprovado a tortura como um instrumento de política externa. É um fenómeno de negação que nenhum destes assaltos à humanidade, em que a Grã-Bretanha esteve activamente envolvida, pôde interferir nas eleições britânicas.
As pessoas nas ruas de Atenas não sofrem deste mal. Elas têm a noção clara de quem é o inimigo e consideram-se elas próprias, uma vez mais, sob ocupação estrangeira. E uma vez mais, levantam-se com coragem. Quando David Cameron começar a cortar 8,7 mil milhões de dólares dos serviços públicos na Grã-Bretanha, vai dizer que o que aconteceu na Grécia não vai acontecer na Grã-Bretanha. Devíamos provar que ele está errado.
24 de Maio de 2010
Retirado do Socialist Worker. Publicado primeiro no New Statesman.
Tradução de Noémia Oliveira para o Esquerda.net
imagem (distorcida)- de Escher
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