Suicidou-se outro professor
“Não consigo viver neste sofrimento, não suporto ouvir falar de escola. Não vou conseguir dar mais aulas.” Esta frase é extraída da carta que José António Fernandes Martins escreveu à mulher antes de se suicidar. Era professor de Matemática e Ciências da Natureza na Escola EB 2,3 de Vouzela e pôs termo à vida no início do presente ano lectivo. José António era um professor experiente, apaixonado pela sua profissão. Era estimado e respeitado pelos alunos e pelos colegas. Nos seus 19 anos de exercício docente, que um vórtice dramático de desespero interrompeu, José António foi director de turma, delegado de disciplina, coordenador de departamento e coordenador de projectos. Diz quem o conheceu e com ele privou que foi um lutador denodado em prol duma escola que não era a que lhe foi sendo imposta. Esgotou-se nessa luta inglória. Morreu numa espiral de sofrimento anónimo, apenas quebrado quando, depois de partir, lhe devassaram o computador. Referindo-se à anterior ministra, Maria de Lurdes Rodrigues, José António escreveu durante o prolongado processo do assédio moral que o vitimou: “Não consigo mais continuar a ser um bom professor. Esta ministra conseguiu secar tudo o que havia de bom na profissão docente".
Impressionou-me o processo do Luís, verga-me o drama do José António. É impossível não se ficar revoltado. A pressão insuportável para promover artificialmente resultados, a incerteza crescente que caracteriza as relações de trabalho e a sua galopante desumanização, promovida por dirigentes sem alma, estão a destruir a escola pública. A vertente dominante da gestão educacional (e da restante gestão pública) dita moderna é o assédio moral, servido como uma inevitabilidade dos tempos. Paulatinamente, as escolas foram-se transformando em locais de subjugação, de vivência dolorosa e inútil. Nos casos extremos do Luís e do José António, em locais de tortura e morte. E este fenómeno cruel não só é promovido como inevitabilidade organizacional, como é mantido em nome de um estranho conceito de novel progresso. Cresce, assim, ante a complacência abúlica de muitos, o número de escolas que se transformaram em pequenas ilhas de tirania.
A corrupção da avaliação educacional, de que a chamada avaliação individual do desempenho docente constitui clímax, é instrumento central do poder repressivo que os gestores modernos idolatram. Gerou medo, destruiu a cooperação, sonegou a partilha da informação, afastou os indivíduos uns dos outros e abriu caminho impune ao assédio moral dos professores, o qual conduz ao desespero, ao isolamento e à depressão. Nos últimos tempos de vida, José António Fernandes Martins calou-se. Deixou de falar da escola. Deixou de se importar com as notícias e de comentar os atropelos que antes o mobilizavam. Ficou sozinho. Soçobrou.
Depois do acordo dos sorrisos, seguiram-se as diatribes do costume. Está parido o estatuto que prolonga a vida efémera do monstro que o antecedeu. Quase nada do que seria relevante mudou. A avaliação do desempenho, tal como a conhecíamos, sistematizada e enquistada num modelo sacro, ressuscitou em tempo pascal, pré-ordenada para transformar a escola democrática na escola de mercado, como convém à economia de mercado. Se não implodirmos esta lógica, não nos devemos espantar se ao Luís e ao José António se sucederem outros.
A avaliação do desempenho só vale a pena se for concebida como instrumento de gestão do desempenho. O seu fim primeiro é identificar obstáculos ao exercício correcto da actividade docente, para os remover, e não escravizar pessoas. Invoco, a propósito, a abundância de estudos e reflexões teóricas que sublinham as perversidades que a avaliação do desempenho introduz nos processos, circunstância que tem deslocado a ênfase para a cultura organizacional. As instituições maduras preocupam-se hoje mais com a apropriação por parte dos colaboradores dos valores que intrinsecamente geram o sucesso e melhoram o desempenho, que com os instrumentos que, extrinsecamente, o promovem.
A qualidade do desempenho profissional dos professores é uma das variáveis que contribuem para a qualidade da formação dos jovens. Mas antes dela abundam muitas outras, que nem a escola nem os professores podem controlar. Lembro algumas, sem as esgotar: baixos níveis de literacia dos pais, com a consequente impossibilidade de continuarem em casa o trabalho da escola; empobrecimento das famílias, num cenário de crescente aumento das desigualdades económicas e sociais; desvalorização do papel social da escola, numa sociedade onde a posse de uma formação longa é cada vez menos garantia de acesso ao trabalho; universalização do emprego precário e aumento do desemprego; políticas urbanísticas inadequadas, geradoras de guetos étnicos e socioeconómicos propiciadores de exclusão e de marginalidade; aceitação e promoção de um paradigma de vida em que a escola deve substituir os pais.
Outras variáveis, directamente actuáveis pela gestão educacional, permanecem intocáveis ou sofreram intervenções degradantes: planos curriculares e programas disciplinares; orientações metodológicas; prestações exigíveis aos alunos e seu estatuto disciplinar; modelo de gestão das escolas; políticas de formação inicial e contínua dos professores; estruturas de supervisão; políticas de rede escolar e de modernização de equipamentos.
Enquanto não entendermos isto, não homenagearemos o calvário do José António.
Santana Castilho
(sublinhados meus)
Santana Castilho
(sublinhados meus)
quadro de Escher
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