07 fevereiro 2009

F.Pessoa: minha pátria é a língua portuguesa

- de tirar o fôlego, por tão bem escrito, um texto de Bernardo Soares, semi-heterónimo de Fernando Pessoa: "Bernardo Soares sou eu menos o raciocínio e afectividade"

Gosto de dizer. Direi melhor: gosto de palavrar. As palavras são para mim corpos tocáveis, sereias visíveis, sensualidades incorporadas. Talvez porque a sensualidade real não tem para mim interesse de nenhuma espécie - nem sequer mental ou de sonho -, transmudou-se-me o desejo para aquilo que em mim cria ritmos verbais, ou os escuta de outros. Estremeço se dizem bem. Tal página de Fialho, tal página de Chateaubriand, fazem formigar toda a minha vida em todas as veias, fazem-me raivar tremulamente quieto de um prazer inatingível que estou tendo. Tal página, até, de Vieira, na sua fria perfeição de engenharia sintáctica, me faz tremer como um ramo ao vento, num delírio passivo de coisa movida.
Como todos os grandes apaixonados, gosto da delícia da perda de mim, em que o gozo da entrega se sofre inteiramente. E, assim, muitas vezes, escrevo sem querer pensar, num devaneio externo, deixando que as palavras me façam festas, criança menina ao colo delas. São frases sem sentido, decorrendo mórbidas, numa fluidez de água sentida, esquecer-se de ribeiro em que as ondas se misturam e indefinem, tornando-se sempre outras, sucedendo a si mesmas. Assim as ideias, as imagens, trémulas de expressão, passam por mim em cortejos sonoros de sedas esbatidas, onde um luar de ideia bruxuleia, malhado e confuso.
Não choro por nada que a vida traga ou leve. Há porém páginas de prosa que me têm feito chorar. Lembro-me, como do que estou vendo, da noite em que, ainda criança, li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o rei Salomão. «Fabricou Salomão um palácio...» E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso: depois rompi em lágrimas, felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele movimento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais - tudo isso me toldou de instinto como uma grande emoção política. E, disse, chorei: hoje, relembrando, ainda choro. Não é - não - a saudade da infância de que não tenho saudades: é a saudade da emoção daquele momento, a mágoa de não poder já ler pela primeira vez aquela grande certeza sinfónica.
Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse.

a.l.

6 comentários:

Anónimo disse...

o texto já esteve lá para baixo, mas ficou perdido no meio de tanta música: "alimento melancólico para os que vivem de amor" (Rayuela, Cortázar)
- por isso o 'transplantei' para aqui, na esperança de que, ao menos, o leiam ..

'blogista melancólica'


Segunda-feira, 01 Dezembro, 2008

Anónimo disse...

bloguista (ai..)

Segunda-feira, 01 Dezembro, 2008

Anónimo disse...

O texto não é de todo desconhecido para mim (já tinha acompanhado as suas andanças da primeira vez que foi escrito, embora não o tenha comentado...). Gosto quase exclusivamente do último parágrafo, embora também ame o resto do texto. E tem, não só de linguística, uma crítica muito profunda que não faço ideia se é intencional ou descuidada ou se foi um daqueles 'vaipes' engenhosos que dá a uma pessoa que mais tarde se apercebe dele e solta um grande "ah!" - enfim, todos nós já passámos por isso... Acho... Mas a crítica de que falava é precisamente a crítica do que sabe exercer o ofício bem e com 'amor à camisola' e o que o faz mal e por obrigação. O que me leva a ter eu próprio um 'vaipe', a exclamar um "ah!" e a dizer: conhecias tu, Bernardo, Maria?

Bjis e boa semana de trabalho!
Terça-feira, 02 Dezembro, 2008

Anónimo disse...

Blogista é giro (nem tinha reparado)!

Não andas a vender aqui o teu peixe? Por muito amado e querido que seja?

E é, de facto. Por ti e por nós.


Terça-feira, 02 Dezembro, 2008

Anónimo disse...

Pois, vender o peixe ... what else?

Bem tentei vender um outro, hoje, véspera de dia 3, e quem diria que, nas actuais circunstâncias -kafkianas? dantescas? - seria preciso??!!

Pois é. Há quem seja cego, e surdo, e tudo.
Como o Dantas.
Como meio-Dantas.
"O escarro que me enoja, independentemente de que o cuspam, ou não!"

E mais não digo, que as perspectivas puseram-me amarga

.........


Tiago,
... a Maria c'est moi? je?
:-)

a.l.

Terça-feira, 02 Dezembro, 2008

Anónimo disse...

Bem, a Maria boa e com amor à camisola é a professora e restantes professores que assim o são ;)

A má Maria é precisamente aquela Maria de nome, aquela que hoje vai levar os professores justamente ao protesto :) essa Maria é a má Maria :D

Bjs!

Quarta-feira, 03 Dezembro, 2008