14 agosto 2011

a impermeabilidade da ganância


Público de 9.8.11


Privilégios e direitos
Por José Vítor Malheiros
Há privilégios legítimos. Outros são uma usurpação, um assalto ao bem público
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No filme Missing, de Costa-Gavras, cuja acção se passa no Chile durante o golpe de Pinochet, em 1973, o papel principal é representado por Jack Lemmon, que é Ed Horman, um empresário americano acabado de chegar a Santiago em busca do seu filho desaparecido. Horman é um conservador, mas, ao longo dos seus contactos com as autoridades americanas, vai-se dando conta de que a embaixada dos EUA lhe mente, apercebe-se de que o seu país teve um papel central no derrube da democracia chilena e começa a suspeitar de que está mesmo implicado no desaparecimento do filho. Um dia, desesperado e frustrado, farto das mentiras oficiais com que o tentam enganar, Horman ameaça processar o cônsul e o embaixador dos EUA e metê-los na cadeia. O cônsul responde-lhe calmamente: "Acho que tem esse privilégio!" "Não, tenho esse direito!", corrige Jack Lemmon.

Horman - a história é verídica - chegou mesmo a processar vários responsáveis americanos, incluindo o inefável Henry Kissinger, sem nunca ter conseguido encontrar os culpados pela morte do seu filho, cujo corpo acabou por ser encontrado. Para mim, esta dicotomia privilégio/direito, exemplarmente explicada no filme, está no coracão de todo o debate político.

Uma publicidade recente a um automóvel diz nos seus outdoors que "o luxo é um direito". A frase pode incentivar a compra do carro, mas é falsa. O luxo não é um direito e não é um direito porque não é indispensável à vida ou à dignidade. É apenas um privilégio. A liberdade é um direito; poder comprar uma jóia é um privilégio. Um direito pertence a todos e não pertence mais a uns do que a outros. Um privilégio é de alguns.

Os privilégios não seriam um problema, se não houvesse o mau hábito de os confundir com direitos. Há quem pense que tem "direito a ter privilégios", como se uma tal formulação fizesse sentido, como se ela não ofendesse a justiça, a lógica e a linguagem. Há quem tente defender essa posição: de facto, dizem, todos gostaríamos de experimentar certos privilégios. E certamente que todos temos o direito de os experimentar, se a ocasião se apresentar legitimamente. Mas a palavra-chave aqui é "todos" e o que não é admissível é partir daí para a formulação restritiva, de defesa dos privilégios de apenas alguns.

Soubemos há dias que os 25 homens e mulheres mais ricos de Portugal viram as suas fortunas valorizar-se 17,8% no último ano - esse ano de recessão, de desemprego, de crise, de falências, de ajuda alimentar. Trata-se de pessoas privilegiadas - pela sorte, pelas suas qualidades e esperamos que por nada mais.

A questão que se coloca aqui é, naturalmente, tentar perceber até que ponto se pode considerar justo, legítimo, este imenso privilégio, este acréscimo do privilégio, numa época onde a maioria das pessoas passou tempos difíceis e, por vezes, terríveis privações.

Não se trata de impor a pobreza franciscana como regra ou de denegrir o sucesso empresarial, mas é evidente que um crescimento da fortuna tão acima do que foram as médias nacionais e em circunstâncias tão adversas para a restante população só se pode explicar pela existência de uma ganância impermeável à mais elementar solidariedade social.

O que isolou dos problemas do resto da população estes 25? Apenas o seu mérito? Como se portaram especialmente bem, quando todos os outros se portaram especialmente mal? Quantos destes 25 pagam todos os seus impostos em Portugal? Quantos têm empresas registadas em paraísos fiscais? Quantos invocaram dificuldades de várias ordens para despedir pessoal nas suas empresas? Quantos pagam salários de miséria nas suas empresas? Quantos destes ricos são subsidiados pelos pais dos seus trabalhadores mais jovens, obrigados a completar com mesadas os recibos verdes com que os seus filhos são pagos? Que benefícios receberam do Estado as empresas destes 25, ao mesmo tempo que eram reduzidos os apoios sociais aos mais pobres? Que benefícios reduziram aos seus trabalhadores as empresas destes 25, em nome das dificuldades da crise? Quantos peixes pequenos comeram estes peixes grandes para poderem crescer como cresceram? Estas são perguntas que temos o direito de fazer. E nenhum privilégio deveria evitar que elas fossem respondidas. (jvmalheiros@mail.com)

le temps menaçant, de Magritte

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Público de 9.8.11
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Ser ideologicamente neutro é uma impossibilidade

por António Vilarigues *

"O capitalista e o trabalhador não têm uma realidade social na economia do século XXI." Ai não?

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1. A frase que dá o título a este artigo é do ministro Vítor Gaspar. Não podia estar mais de acordo. A mensagem passou na Assembleia da República e o recado está dado a todos os que por aí andam a perorar sobre a independência ideológica versus os proselitismos.

Já quanto a outras considerações, ideológicas como é óbvio, do senhor ministro o caso muda de figura.

"O capitalista e o trabalhador não têm uma realidade social na economia do século XXI, se é que a tiveram na economia do século XIX." Ai não?

Tributar salários e pensões com um imposto extraordinário e recusar-se firmemente a fazê-lo em relação aos dividendos, às transacções bolsistas e às transferências para os offshore é o quê? Não é uma opção de classe?

E o que dizer de pretender reduzir (ou eliminar) as indemnizações que as empresas devem aos trabalhadores, quando os despedem sem justa causa? Isto, ao mesmo tempo que o Governo mantém intocáveis as indemnizações que os trabalhadores (se não cumprirem o pré-aviso) devem às empresas quando se despedem?

Como qualificar o facto de, passados 23 anos (!!!) do encerramento da Mundet, no Seixal, os trabalhadores terem começado a receber as suas indemnizações - entre os 26 cêntimos e os 30 euros?

Qual a "realidade social na economia do século XXI" do capital em Portugal? Apropria-se de quase 70% (!!!) do rendimento nacional do país. A fortuna dos 25 mais ricos de Portugal aumentou 17,8 por cento, somando 17,4 mil milhões de euros, mais de 10% do PIB. O homem mais rico, Américo Amorim, viu os seus activos crescerem 18,2% num ano. Só no sector da cortiça teve, em 2009, de lucro por dia 64.000€. Mas o mesmo Américo Amorim nem pestanejou ao propor um aumento de 15 cêntimos (!!!) por dia aos trabalhadores deste sector.

Os resultados do primeiro semestre deste ano, revelados pelos principais grupos económicos, exprimem-se em crescimentos que chegam a ultrapassar os 100%. A Corticeira Amorim, SGPS, o grupo Jerónimo Martins e a Sonaecom viram os seus lucros crescer 20,3%; 40% e 62% respectivamente. Entre os principais bancos, o BPI e o BCP fecharam o semestre, respectivamente, com 70 milhões e 100 milhões de euros de lucros. A EDP Renováveis duplicou os seus lucros, para 90 milhões de euros, e a EDP aumentou em 8%, para 609 milhões de euros. A Prossegur aumentou os lucros em 77,5%, a Portucel em 8%, a Mediacapital em 18%. A Galp apresentou lucros de 111 milhões de euros.

No pólo oposto, o retrato da "realidade social" dos trabalhadores - e dos pensionistas, e dos micro, pequenos e médios empresários - é bem conhecido. O contraste dificilmente podia ser maior.

2. Gabriel Fino Noriega, Julho de 2009. Claudia Larissa Brizuela, 24 de Fevereiro de 2010. Víctor Manuel Juárez, 1º trimestre de 2010. José Bayardo Mairena, 1º trimestre de 2010. Joseph Ochoa, 1º trimestre de 2010. Joseph Hernández, 26 anos, no dia 2 de Março de 2010. David Meza, 51 anos, 11 de Março de 2010. Nahún Palacios Arteaga, 34 anos, 14 de Março de 2010. Israel Zelaya, 62 anos, 24 de Agosto de 2010. Hector Palanco, Maio de 2011. Adán Benitez, 4 de Julho de 2011. Nery Orellana, 26 anos, 13 de Julho de 2011. O que têm de comum estes nomes?

Todos eram naturais das Honduras. País onde em 28 de Junho de 2009 ocorreu um golpe militar que derrubou o governo legítimo e instaurou uma ditadura. Golpe comandado pelos EUA e por Obama. Perseguições, agressões, ameaças de morte (aos próprios e aos familiares), sequestros, prisões, assassinatos: eis as Honduras de hoje. Silêncio absoluto sobre a repressão nas Honduras: eis o "critério informativo" adoptado pela comunicação social dominante no nosso país.

Todos eram jornalistas. Todos foram assassinados a tiro por "desconhecidos". Todos foram notícia em órgãos de comunicação social estrangeiros. Em Portugal nem uma linha, nem uma palavra, nem uma imagem. Excepção feita ao jornal Avante! e alguns blogues, com destaque para o Cravo de Abril. Em Portugal há de certeza jornalistas que condenam esses crimes. Jornalistas que, como cidadãos e como profissionais, desejariam denunciá-los e apelar à solidariedade para com as vítimas. Por que não o fazem?

* Especialista em sistemas de comunicação e informação.
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