23 julho 2011

the haves and have nots

P L U M A C A P R I C H O SA
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Trabalhar e poupar para quê?
o trabalho e a poupança não chegam para salvar a classe média
por CLARA FERREIRA ALVES
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Anda por aí um conselho: temos de trabalhar e poupar. Como se o futuro dependesse de esforçadamente nos matarmos a trabalhar por menos dinheiro — poupando em quê, onde? — e pagarmos uma dívida que não contraímos nestes termos nem com estes juros de agiotagem. Anda por aí a mania de que os chineses poupam. E que é por isso que estão tão bem de vida. Os chineses não poupam. Os chineses pobres poupam. E quanto mais dinheiro ganham, mais consomem. Esbanjam.

A verdade é que por muito que trabalhemos e poupemos, isso não nos livrará da abjecta miséria se amanhã o sistema de protecção falhar e formos, de um dia para o outro, todos desempregados. Reformados sem reforma. Ao contrário dessa forma de falsa sabedoria popular que passa por sapiência de economista, não existe um empreendedor solitário no coração de cada um de nós. Pode existir um desesperado, um suicida, um assassino, um ladrão ou um agitador. Uma vítima silenciosa. Não existirá sempre um empresário.

As teorias do narcisismo e da auto-estima que tanto apreciamos, e que assentam num período de expansão económica, paz social, excesso de liquidez, crédito barato e abundância, pregam que podemos vencer todas as dificuldades por força e mérito da vontade, por exercício da inteligência e da educação. Por bom comportamento. As pessoas têm a estranha convicção, desmentida pela história, de que o seu mundo não pode acabar de um dia para o outro e de que podem controlar o que lhes acontece. Não podem. Aqueles que julgavam que a Alemanha não invadiria a Polónia, e que se não incomodassem muito Hitler ele não os incomodaria, acordaram com amargos de boca. Os judeus julgaram que estavam protegidos pela sua educação, a sua inteligência, a sua perspicácia, a sua assimilação, a sua devoção à weltanschaaung.

A economia em que crescemos e que conhecemos assenta no consumo. A nossa, europeia, e a alheia, a americana, a chinesa, a brasileira, a indiana. Todo o nosso estilo de vida assenta no consumo. No gasto. Na importação. Na livre circulação de mercadorias. Na famosa e desregulada globalização. Não assenta na poupança. Assenta na especulação. No risco. Assenta na criatividade e na revolução tecnológica servidas por legiões de miseráveis semianalfabetos designados por mão de obra barata. Assenta no saque planetário de matérias-primas. Assenta no petróleo. Perguntem a um jovem da sociedade de consumo se ele prefere jejuar ou ficar sem Internet. Ele preferirá jejuar. Um dia, poderá deixar de escolher e perceberá como vive a maioria da população mundial. Os explorados existem, nós é que não damos por eles.

Dizem que o dinheiro acabou. Basta olhar para o mercado da arte contemporânea a as indústrias e serviços do luxo para perceber que nunca os que têm dinheiro tiveram tanto dinheiro. O dinheiro não acabou, o que acabou foi o acesso ao dinheiro e as regras da sua circulação, controladas por uma plutocracia que convenceu o resto do mundo, incluindo os políticos e académicos que recrutam e aos quais pagam, de que são eles os senhores do dinheiro e das regras.

Se olharmos para pequenos países ricos, como Singapura, a Suíça, o anedótico Mónaco, que vemos? Vemos que são pequenos e bem administrados. Vemos também que não é por serem bem administrados que prosperaram. Prosperaram porque instituíram regras de acolhimento do dinheiro dos que têm muito dinheiro. Serviços financeiros. Em Singapura ninguém se mata a trabalhar, muito menos é poupado. É, como Xangai, Dubai. São Paulo ou Mumbai, um lugar onde se gasta dinheiro como se não houvesse amanhã. Em Singapura, a Gucci e a Prada são armazéns. No aeroporto de Dubai vendem-se Aston Martins. Não se vê ninguém a poupar. E os que se matam a trabalhar são, precisamente, os escravos destes reinos. Os chineses e malaios pobres imigrados em Singapura, os paquistaneses, afegãos, indianos, bangladeshis que construíram cidades do século XXII sobre as areias dos emirados. As amas filipinas traficadas. Os iraquianos e palestinianos fugidos da guerra. Os destituídos que, por mais que se matem a trabalhar, nunca sairão da destituição. As legiões invisíveis.

É isso que a plutocracia espera dos povos, a submissão. Porque a plutocracia não tem país, não tem nação, odeia o estado. Os super-ricos conhecem-se todos, têm os mesmos hábitos, adquirem as mesmas coisas. Encontram-se nos mesmos lugares. Numa economia global, estão em toda a parte ao mesmo tempo. A sua extravagância não conhece limites. Nos Estados Unidos, em 2007, 1% da população controlava 35% da riqueza do país. A classe média proletarizada acha que trabalhar e poupar a ajudará a controlar a sua vida mas esse controle escapou-lhe das mãos. O trabalho e a poupança não chegam para a salvar do capitalismo financeiro global e das suas práticas de jogo. 

REVISTA ÚNICA 16/07/2011
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