31 maio 2011

cultura de responsabilização precisa-se! -2

A cena de agressão referida no post anterior passou-se na rua. Podia ter ocorrido numa qualquer escola pública do nosso país, daquelas que depois aparecem 'mal colocadas' nos rankings.

quadro de F. Goya
Há excepções, claro! A minha sobrinha, que tem agora 27 anos, diz que nunca, nos 3 estabelecimentos de ensino público que frequentou, viu coisas destas acontecerem. Sempre viveu em zonas não-problemáticas de Lisboa.

Já o meu filho (25 anos) teve um colega, e logo no 1.º ciclo, 3.º ano, que um dia levou para a escola (pública, margem sul) uma navalha. Que num intervalo a encostou ao pescoço de uma colega de 8 anos. Um miúdo já então membro de um gang, 12? 14? anos decerto agredidos, mas também agressores, e inimputáveis.

Eu, que sou professora desde 1976, há muito que venho desconfortavelmente convivendo com cenas de violência entre alunos. Cá fora, nos intervalos, há os que interpelo porque se agridem mutuamente, por vezes 'nas barbas' de um adulto, professor, funcionário ... Estranham e ressentem a "intromissão", respondem que "estavam só a brincar", separam-se  até eu virar costas. E há as lutas violentas, um no chão pontapeado por 3, 4, 5 maiores que ele/ela, por exemplo. Não consigo passar ao lado, ignorar. Quase sempre apanho também, tentando defendê-los dos bullies, apartando quantos vejo querendo quase matar(-se). Continuo e continuarei a fazê-lo, sabendo todos os riscos que corro.

Uma única vez não intervim, em toda a minha vida de professora, por medo. Ainda hoje 'vejo' a cena acontecer diante dos meus olhos. Eu teria 26 anos, a escola onde dava aulas era o liceu Passos Manuel, junto à AR, em Lisboa. Sábado de manhã, à hora da saída, um professor é ameaçado e atacado por um bando: tinham vindo dos lados do Bairro Alto armados de correntes, chamados por um "ofendido" aluno da escola. Até chegar a polícia que os pôs em fuga, o professor apanhou, defendeu-se como pôde, sozinho. Muitas pessoas assistiam à cena, aparentemente inalteradas: alunos, professores, empregados, homens, mulheres. Tenho vergonha por não ter feito nada, também eu, apesar de saber que teria provavelmente morrido se interviesse. Não se fôssemos muitos, não se tivéssemos sido todos. Como devíamos.

Desde então passei por muitas escolas. Seja porque o panorama se agravou ou porque calhou mudar-me para a margem sul, o facto é que, desde há pelo menos 18 anos, cenas de agressão violenta  [e não falo agora das que ocorrem na sala de aula, entre professor e aluno(s)], são quase o "pão nosso de cada dia": dentro do recinto escolar, se entre elementos da mesma escola, ou cá fora junto ao portão, se os gangs são chamados a "ajudar" - essas sim, umas verdadeiras 'fights', como eles próprios lhes chamam, e que ninguém perde por nada deste mundo. Correm para garantirem lugar na 1ª fila. Vêm amigos de outras escolas ou de mais escusas paragens, todos jovens, todos violentos, muitos criminalmente 'inimputáveis'.

A escola onde trabalho actualmente quase todos os dias recebe a visita do corpo policial "Escola Segura". Chegam ... a tempo de registar a ocorrência: roubos, droga, agressões.

E assim este estado de coisas se perpetua. A política seguida é basicamente a da avestruz, não vá a escola ficar com má reputação, arriscar perder alunos. Quem fala é silenciado. Aconteceu-me a mim, quando escrevi sobre o tema no blogue da escola. Violência? Qual violência?! Dias depois, no país, suicidava-se um aluno, mais tarde vem a notícia de que também um professor, anteriormente. Os dois vítimas de bullying. Os dois esperando justiça, ainda. Os dois esquecidos, já. Foi há um ano ..

Associação de Pais, lá pela minha escola, há, teoricamente, mas na prática não funciona. Tem meia dúzia de membros e pouco ou nada consegue fazer. Os outros pais não se inscrevem, delegam a responsabilidade que deveria ser de todos, 'despertencem'. Os que sempre vão às reuniões com o director de turma são, invariavelmente, aqueles cujos filhos não dão problemas. A escola, os professores, que resolvam e se aguentem.

As leis do Ministério da Educação tolhem qualquer medida drástica. Só muito raramente se permite expulsar definitivamente um aluno. Mas não do sistema, da rede de escolas públicas da sua residência. Saem de uma  e levam o "inferno" para outra, que alguma tem de aceitar-lhes a matrícula. Naquela onde trabalho recebemo-los amiúde.

Os pequenos "delinquentes" podem até ser suspensos por uns dias quando exageram na infracção de regras. Acabada a "pena" regressam para se envolverem em mais lutas, desacatos, confusões. Podem entretanto estar reprovados por faltas, previsivelmente todas de ordem disciplinar, mas é obrigatório mantê-los na escola, ao abrigo da bendita 'escolaridade obrigatória'. Informados da sua já-retenção, vão às aulas se e quando lhes apetece. Entram a qualquer hora (não se pode deixar um aluno na "rua", ainda que se lhe marque falta de atraso/presença!) com um único intuito: chatear, desestabilizar tudo e todos, sobretudo o/a professor/a. Que às vezes insultam, maltratam do piorio. Que não lhes pode tocar. Que aguenta, 10, 20, 100 vezes. Que fará - ou não - mais uma participação disciplinar do aluno. Que se está "nas tintas". Que não tem nada a perder. E que sabe que nada de drástico lhe acontecerá !
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