EM SINTRA
As águas maravilham-se entre os lábios
e a fala, rápidos
em Sintra espelhos surgem como pássaros,
a luz de que se erguem acontece às águas,
à flor da fala
divide os lábios e a ternura. Da linguagem
rebentam folhas duma cor incómoda, as de que
maravilhado de água surges entre
livros, algum crime, um
menino a dissolver-se ou dele os lábios e ergues
equívoca a luz depois. Rápidos
espelhos então cercam-te explodindo os pássaros.
Luís Miguel Nava [1957-1995]
Películas (1979) - In Poesia Completa 1979-1994
retirado do site do Instituto Camões
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Lembro-me dele criança, passeando com a mãe pelas ruas de Viseu. E recordo vagamente o adolescente esquivo, esgalgado, despenteado quase sempre, raramente (a)percebido, um raio atravessando sozinho as gentes e os dias, um vento buscando-se.
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O Perry Nava, nome por que o conhecíamos, era um mito naquela cidade de então, provinciana, tacanha, pequena. Pela boca da minha mãe ia a espaços, ouvindo de desassombros seus que me faziam admirá-lo, invejar-lhe a impetuosidade meio louca, a ousadia precoce, aquela incontrolável franqueza.
E ouvia dessa inteligência aguda que os professores do nosso liceu reconheciam e elogiavam, da sua invulgar aptidão para a escrita, do rótulo de sobredotado, criança, adolescente.
Soube de uma composição sua num teste de português em que o tempo lhe foi escasso, uma única frase que nunca mais esqueci. O tema era o "dia de todos os santos", o Perry Nava (quase criança), poetizou-o assim:
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E ouvia dessa inteligência aguda que os professores do nosso liceu reconheciam e elogiavam, da sua invulgar aptidão para a escrita, do rótulo de sobredotado, criança, adolescente.
Soube de uma composição sua num teste de português em que o tempo lhe foi escasso, uma única frase que nunca mais esqueci. O tema era o "dia de todos os santos", o Perry Nava (quase criança), poetizou-o assim:
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Que me importa de morrer, se no cemitério há flores.
Não sei se haverá flores na sua campa, hoje. Sequer, se há uma campa. Luís Miguel Nava foi assassinado em Bruxelas, em 1995. Tinha 38 anos, deixou testamento (*) (- quem, assim jovem, pensa na morte a ponto de o fazer?) Antes, muito antes, publicara um livro de poemas (acho que prefaciado por Eugénio de Andrade), a que chamou "O Perdão da Puberdade", de que mais tarde veio a comprar todos os exemplares, retirando do mercado essa primeira, renegada obra. O Perry Nava de sempre, a inquietação que lhe adivinho constante. Como uma alma buscando-se. Ou como um vento.
(*) Dele resultou uma revista e uma fundação : aqui
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O céu
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Assoam-se-me à alma, quem
como eu traz desfraldado o coração sabe o que querem
dizer estas palavras.
A pele serve de céu ao coração.
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Onde há quem tenha a pele tenho a memória, sepultura
nenhuma atingirá profundidade igual à desta
nudez com quem a pele sempre tem sido hospitaleira.
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Sinto a romper na boca os dentes como a ventania.
Luís Miguel Nava
poemas retirados daqui
«Escrever é, para mim, tentar desfazer nós, embora o que na realidade acabo sempre por fazer seja embrulhar ainda mais os fios. A própria caligrafia é sufocada.
Há, todavia, um momento em que as palavras são cuspidas, saem em borbotões, e o sangue e a saliva impregnam o sentido. É impossível separá-los.
Por trás talvez não haja mesmo nada. São palavras que não estão ginasticadas, que secam e encarquilham como folhas por que a seiva já não passe.
Oprimem toda a página, através da qual deixa de ser possível respirar. Tapam-lhe os poros. A própria chuva que neles caia não se escoa. »
Luís Nava no "Sons da escrita"
"A poesia de Luís Miguel Nava ocupa um lugar de especial relevo na Literatura Portuguesa Contemporânea. Segundo Eduardo Prado Coelho, estamos “perante uma das experiências literárias mais originais, perturbantes e apaixonantes da poesia portuguesa contemporânea”.
Gastão Cruz, falando do estilo de Nava, considera-o “a única presença verdadeiramente forte e diversa afirmada no panorama poético português dos anos 80…”
Nava abriu um caminho: um percurso estranho e contudo reconhecível, que conduz ao interior menos visitado do homem, alargando, ao mesmo tempo, as formas de comunicação com o quotidiano, ao aprofundar intensamente os vínculos que nos unem ao nosso próprio corpo. Habituados a um lirismo muitas vezes feito de metáforas domesticadas pelo uso reiterado, invade-nos uma sensação de desconforto ao entrarmos pela primeira vez no universo de uma poesia que faz do corpo o centro de irradiação de todos os sentidos e de todas as demandas.
É a partir do corpo que se organiza, de forma meticulosa e obsidiante, o mundo habitável e habitado desta poesia" (ler mais)
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