- no Público, 19-8-10, na rubrica Cartas à Directora, este grito:
Uma amargura sem limites
O meu Bruno escolheu a vida de operário. Operário todo construído, daqueles que minuto a minuto enfrentam a medonha boca do forno eléctrico da Siderurgia e tratam respeitosamente por tu o aço que a cerca de 1000 graus centígrados é filho da sucata que o forno engole.
É lindo o meu filho, os olhos azuis da avó, os ombros largos do pai, atleta esbelto cinturão negro de karaté. É muito bom o meu Bruno Daniel, respeitador, educado, cumpridor, responsável.
É um homem que enche de orgulho a família e de amor a namorada de há muitos anos e com quem ia casar já no próximo sábado.
Estavam imensamente felizes, não se cansavam de mostrar as fotos que o amigo lhes tirara no cabo Espichel para o álbum de casamento. (...)
Jantei com ele a última vez há dois dias no aniversário da irmã, que protege como um lobo. Adoram-se, eles, e como a pequena sentiu o sofrimento do irmão.
A festa acabou às 21h, que ele tinha que regressar às 22h para aquele inferno de aço e fogo e cumprir mais 10 horas dum horário que não respeita famílias, saúde, condições climatéricas, não respeita nada a não ser a vontade dos gestores em poupar na factura da electricidade à custa do esforço e do corpo de jovens como o meu Bruno.
Gestores espanhóis e acólitos portugueses que não hesitam em obrigar os trabalhadores portugueses ao gozo de férias em Fevereiro, a trabalhar sem necessidade nos nossos dias feriados mais queridos, em exigir que por interesse exclusivo da empresa se gozem dias de férias do ano que vem e em perseguir os poucos que se atrevem a opor-se a estas atitudes desumanas. (...)
É lindo o meu Bruno, quero acreditar que assim continuará após o acidente de trabalho que sofreu ontem pelas 23h30, ainda dentro daquelas horas de sacrifício extra (...). Nem o pude ver no hospital, tal o estado em que 30% de queimaduras lhe deixaram o peito, abdómen e ancas. Continuará sempre lindo, ao menos para nós, mas por agora a felicidade imensa que irradiava abandonou de repente os seus maravilhosos olhos azuis e mergulhou-nos numa tristeza que desconhecíamos e numa revolta tremenda. Dizem-nos do hospital que psicologicamente está de rastos. Como sofremos por ele e com ele.
Havemos de levantá-lo, temos essa esperança, tal como temos a esperança de que aqueles jovens que ali trabalham naquelas condições dificílimas se levantem um dia e se tornem homens de corpo inteiro e se unam para lutar pela vida social, familiar e laboral que merecem e que a ganância desmesurada de uns poucos lhes rouba sem qualquer pudor. Havemos de arrancá-lo, leve o tempo que levar, aquela armadura de ligaduras que agora lhe cobrem o corpo e às cicatrizes que teimarão em alterar-lhe as formas do seu corpo até ontem bem moldado.
Tanto que, percebendo a sua apetência para as questões da higiene e segurança, o aconselhámos a fazer o curso de técnico dessa área... "Como posso estudar com estes horários, pai? Não dá." Respondia-me invariavelmente assim alimentando-me a revolta perante a impotência de lhe dar alternativas neste país tão madrasto.
O destino é irónico e cruel, escolhe os melhores para maltratar, quando tantos outros mereciam pior sorte. Que o sacrifício e o sofrimento que o Bruno atravessa sirvam ao menos para que outros exijam e consigam ser tratados na sua terra como seres humanos, porque o são. É este agora, a par da exigência de um tratamento que devolva ao meu filho tudo aquilo que até ontem tinha, um objectivo de vida deste pai profundamente ferido.
Joaquim Escoval
Presidente da Assembleia de Freguesia de Palhais, juiz social, dirigente sindical da Fiequimetal
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