26 julho 2010

um poema de José Gomes Ferreira


Devia morrer-se de outra maneira.
Transformarmo-nos em fumo, por exemplo.
Ou em nuvens.

Quando nos sentíssemos cansados, fartos do mesmo sol
a fingir de novo todas as manhãs, convocaríamos
os amigos mais íntimos com um cartão de convite
para o ritual do Grande Desfazer: "Fulano de tal comunica
ao mundo que vai transformar-se em nuvem
hoje às 9 horas. Traje de passeio".

E então, solenemente, com passos de reter tempo, fatos
escuros, olhos de lua de cerimónia, viríamos todos assistir
a despedida. Apertos de mãos quentes.
Ternura de calafrio.
"Adeus! Adeus!"

E, pouco a pouco, devagarinho, sem sofrimento,
numa lassidão de arrancar raízes...
(primeiro, os olhos... em seguida, os lábios... depois os cabelos... )
a carne, em vez de apodrecer, começaria a transfigurar-se
em fumo... tão leve... tão subtil... tão pólen...
como aquela nuvem além (vêem?) — nesta tarde de outono
ainda tocada por um vento de lábios azuis...


José Gomes Ferreira - Poesia III

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