01 fevereiro 2010

a caça às bruxas

Mário Crespo deixa "JN" e publica crónica censurada 

A crónica do jornalista da SIC,"O Fim da Linha" - que não foi publicada hoje no "Jornal de Notícias" por decisão da direcção, sairá em livro já no próximo dia 11. A obra reúne mais de cem crónicas publicadas nos últimos dois anos por Mário Crespo e tem prefácio de Medina Carreira. (fonte)

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E pronto, calaram o Mário Crespo. Eu nem queria acreditar quando o li por mail que me chegou. Não queria, porque o seu afastamento me dói como uma perda. Habituei-me a ver no Mário Crespo um amigo, daqueles que tão bem nos sabem ler, que dão pública voz às nossas raivas, à nossas impotências tantas.

Não queria acreditar, mas o seu saneamento não me espanta minimamente. O Mário Crespo sabe, como ninguém, ir lá bem fundo onde a 'coisa' incomoda, e fá-lo com uma mestria rara, a sua prosa cativante e clara, eivada de uma ironia saborosa. O Mário Crespo é o homem da análise contundente, da crítica certeira, desassombrada. E fá-lo sem medos nem rapa-pés, denuncia o que quase todos os outros calam. 

As suas crónicas eram alimento para mentes sedentas, se não de justiça, que a essa seria irrealista aspirar ( .. ), pelo menos de que a verdade seja posta a nu, os podres poderes expostos e questionados. Era assim sempre que calhava lê-lo, uma lufada de ar fresco no cinzentismo encurvado do pseudo jornalismo nacional, uma rabanada de vento despenteando esta ditadura transvestida.

O Mário Crespo é um JORNALISTA, íntegro e inteiro. Mas nem José Sócrates quer que o 'desvendem', nem os seus executores estão dispostos a perder a condição de 'yes-men' que lhes garante o emprego, nem esta sociedade é saudável, nem este socialismo é socialismo. 

Calou-se a última voz que lhes desnudava a pomposa inexistência, aqui não ficou mais ninguém disposto a gritar que o 'rei vai nu'. Bem-vindos ao deserto.

a crónica censurada:

O Fim da Linha
Mário Crespo
Terça-feira dia 26 de Janeiro. Dia de Orçamento.

O Primeiro-ministro José Sócrates, o Ministro de Estado Pedro Silva Pereira, o Ministro de Assuntos Parlamentares, Jorge Lacão e um executivo de televisão encontraram-se à hora do almoço no restaurante de um hotel em Lisboa.

Fui o epicentro da parte mais colérica de uma conversa claramente ouvida nas mesas em redor. Sem fazerem recato, fui publicamente referenciado como sendo mentalmente débil (“um louco”) a necessitar de (“ir para o manicómio”). Fui descrito como “um profissional impreparado”. Que injustiça. Eu, que dei aulas na Independente. A defunta alma mater de tanto saber em Portugal.

Definiram-me como “um problema” que teria que ter “solução”. Houve, no restaurante, quem ficasse incomodado com a conversa e me tivesse feito chegar um registo. É fidedigno. Confirmei-o.

Uma das minhas fontes para o aval da legitimidade do episódio comentou (por escrito): “(…) o PM tem qualidades e defeitos, entre os quais se inclui uma certa dificuldade para conviver com o jornalismo livre (…)”. É banal um jornalista cair no desagrado do poder. Há um grau de adversariedade que é essencial para fazer funcionar o sistema de colheita, retrato e análise da informação que circula num Estado. Sem essa dialéctica só há monólogos.

Sem esse confronto só há Yes-Men cabeceando em redor de líderes do momento dizendo yes-coisas, seja qual for o absurdo que sejam chamados a validar. Sem contraditório os líderes ficam sem saber quem são, no meio das realidades construídas pelos bajuladores pagos. Isto é mau para qualquer sociedade. Em sociedades saudáveis os contraditórios são tidos em conta. Executivos saudáveis procuram-nos e distanciam-se dos executores acríticos venerandos e obrigados.

Nas comunidades insalubres e nas lideranças decadentes os contraditórios são considerados ofensas, ultrajes e produtos de demência. Os críticos passam a ser “um problema” que exige “solução”. Portugal, com José Sócrates, Pedro Silva Pereira, Jorge Lacão e com o executivo de TV que os ouviu sem contraditar, tornou-se numa sociedade insalubre.

Em 2010 o Primeiro-ministro já não tem tantos “problemas” nos media como tinha em 2009.
O “problema” Manuela Moura Guedes desapareceu.
O problema José Eduardo Moniz foi “solucionado”.
O Jornal de Sexta da TVI passou a ser um jornal à sexta-feira e deixou de ser “um problema”.
Foi-se o “problema” que era o Director do Público.

Agora, que o “problema” Marcelo Rebelo de Sousa começou a ser resolvido na RTP, o Primeiro Ministro de Portugal, o Ministro de Estado e o Ministro dos Assuntos Parlamentares que tem a tutela da comunicação social abordam com um experiente executivo de TV, em dia de Orçamento, mais “um problema que tem que ser solucionado”. Eu.

Que pervertido sentido de Estado. Que perigosa palhaçada.

Nota: Artigo originalmente redigido para ser publicado hoje (1/2/2010) na imprensa.

3 comentários:

João Francisco disse...

E muito o deixaram falar, Ana... já estava a estranhar...

sílvia disse...

Na primeira noite eles aproximam-se e colhem uma Flor do nosso jardim e não dizemos nada.
Na segunda noite, Já não se escondem; pisam as flores, matam o nosso cão, e não dizemos nada.
Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, Já não podemos dizer nada.

AL disse...

é verdade, também eu estranhava, o q só mostra q não vivemos numa democracia, não é?
bjis