15 novembro 2009

Vimos à vida para sonhar


Descobri este poema em forma de carta, de Mia Couto, que traduz bem o que eu e muitas pessoas sentimos neste momento. Especificando: o que sentem muitos professores, bem como todos aqueles que se preocupam com o rumo da Educação neste país.
A equipa ministerial de Maria de Lurdes Rodrigues encarregou-se da tenebrosa tarefa de cercear a liberdade criativa de professores,alunos e até Pais, transmitindo , em cada alínea legislativa nova, a vontade de sepultar a iniciativa e a liberdade de um povo que se deseja (ainda mais) amorfo, (ainda mais incapaz) de pensar por si; transformando, através do seu sistema "educativo", os cidadãos do Presente e do Futuro em meras formiguinhas cegas e mudas. Formiguinhas de trabalho sem direitos, de cabeça baixa, sincronizadas.
Não sei em que contexto terá surgido este poema de Mia Couto, mas ele abre-nos, neste momento, a porta possível para quem tenta resistir a toda esta loucura de tirania e corrupção que se apossou do país e que o está a delapidar.
Poderão ver alguns esperança no novo ME, com carinhas novas, mel a escorrer das bocas e promessas mil, mas já se viu há muito (só quem quiser aceitar esse papel de cego expectante é que não vê) que se trata apenas de uma estratégia para ganhar tempo e dar os factos --- as ilegalidades e sevícias mil impostas à Escola Pública-- por "consumados". O mesmo estilo com que facilmente se protelam e arquivam casos escandalosos na nossa Justiça.
Fica-nos o dom de sonhar e de nos nossos sonhos mais ou menos solitários e solidários irem "matando", com armas diferentes, esses traidores de Portugal e da Humanidade.
Eis então:
CARTA
(digo dos que se ditam: a minha defesa são os vossos punhais)
Quando me disseram "não se vem à vida para sonhar" passei a odiar-vos.Para vos matar escolhi materiais inacessíveis ao meu ódio. Em mim fizestes despertar a irreparável urgência de ferir.
Descobri a vossa intenção: decepar as minhas raízes mais profundas, obrigar-me à cerimónia das palavras mortas, Preferi reiniciar-me: na solidão me apaguei. Estava só para me encher de gente, para me povoar de ternura. Eu queria simplesmente olhar de frente a verdade das pequenas coisas: esta água vem de onde,quem teceu este linho, que mãos fizeram este pão?
Desloquei-me para tudo ver de um outro lado: levei o meu olhar, o desejo de um princípio infinitamente retomado. Ganhei sonoridade nas vozes que me habitavam silenciosamente.Entre mar e terra eu preferia ser espuma, ter raiz e poente entre oceano e continente.
O tempo, por vezes, morria de o não semear. Terras que golpeava com ternura eram feridas que em mim se abriam para me curar. Erram terras suspeitas, acusadas de futuro. Outras vezes eram mãos de um corpo que ainda me não nascera. Surgiam da obscuridade para afastar a água e nela me deixar tombar. Tecido que escapava da mais bela das lavadeiras eu ia pelo rio, a corrente insuflando-me e eu deixando-me arrastar com fingida contrariedade.
(Outubro 1981)

4 comentários:

AB disse...

Texto de Mia Couto bem actual. Não podemos ir na corrente, já fomos por demais enganados. Fico contente que tu, Margarida, dês voz à inquietação que continua presente.
Parabéns também pelo blog, foi uma surpresa; bem agradável!
Irei voltar. Obrigada!

Zulmira disse...

Deixemos o sonho comandar a vida e a esperança acalentar-nos o espírito nos dias mais chorosos.....

AB disse...

Voltei para dar os Parabéns aos restantes membros d'" o vento que passa"...

AL disse...

Margarida, gostei imenso -do texto, do 'boneco'; a carta do mia couto é muito poética, enternecedora..

neste momento não acho que seja 'pelo sonho que vamos'. penso, isso sim, que temos de estar bem acordados, deixar crescer em nós a raiva e a força e a vontade 'indómita' de lutar. são muitos os adamastores que temos pela frente, mais óbvios uns do que outros. desentorpecer, levantar a cabeça e aguçar os sentidos, o que é imperioso que façamos. lutar, a palavra de ordem.