15 março 2009

perplexidades e um filme: O Leitor

O que pode levar um pai a esquecer no carro o filho bebé ? um jovem aparentemente 'normal' a assassinar - porque sim - 15 pessoas ? uma mulher de 40 anos a escolher a prisão perpétua em detrimento da assumpção do seu analfabetismo ? três estórias que nos 'saltam' à frente, subitamente reais, coincidindo quase no tempo, no espaço mediático : as duas primeiras notícias de jornal, de televisão, a terceira argumento de um filme.

De comum, a estranheza, a incompreensão dos meandros, daquilo a que o senso comum chamaria 'lógica'. E a recusa de uma admissão óbvia: aconteceu. Depois, é sobretudo o medo que nos assalta, e a pergunta inevitável: poderíamos ser nós? Até que ponto somos, todos, vulneráveis à maldição de um qualquer desarranjo químico, de um desvio psicológico-mental, a essa espécie de sonambulismo neurótico que parece retirar-nos do corpo-mente-objecto-familiar e transformar-nos noutro, um 'outsider' de nós próprios? Como n'O Estrangeiro, de Camus: basta um momento, uma circunstância.

Vi ontem 'O Leitor', do inglês Stephen Daldry, o mesmo realizador de ‘As Horas’ e acho que o filme é, precisamente, sobre a estranheza, um viver nos limites do sonho, do inconfessado, do silêncio. Uma paixão de que não se fala, um passado que se relega para os recônditos do subconsciente. A própria verbalização dos nomes soa estranha, descabida. Real, assumidamente desejada, diurna, só a leitura e o seu ritual: prémio antecipado para ela, direito conquistado para ele. A palavra escrita, mágica, capaz, ela só, de desvendar sentimentos. Os livros e os laços que eles criam, indestrutíveis e para sempre. Nas margens, muito nas margens, fica a memória do Holocausto, dos horrores, do papel dela na História. Um papel que, de resto, parece não compreender, como se lhe fosse acessório, exterior. Mais do que carcereira, ela era a mulher " who liked to be read to ".
Merecidíssimo, na minha opinião, o óscar para Kate Winslet. Como o teria sido também para o jovem leitor, David Kross.


2 comentários:

Anónimo disse...

Um excelente filme que eu também vi recentemente, numa interpretação fabulosa de todos os actores, mas sem dúvida que Kate Winslet teve o maior destaque no seu fabuloso papel de condenada, no fundo, por não saber ler e por detestar não o saber. Achei a conclusão do filme (que não vou colocar aqui porque não tenho o direito a ser "spoiler") aquilo que foi mais marcante, com o ponto final na história de Hanna Sshmitz colocado em beleza.
As outras duas estórias não consigo comentar. A barbaridade das atrocidades cometidas são indescretíveis... (Apenas acho que é importante de salientar para os más-línguas que por aí andam: os professores que morreram no ataque à escola, morreram para proteger alunos, entre eles e o assassino...)

Beijinhos ^^

Carlos Milho disse...

O que mais me assustou no caso do bebé foi pensar que talvez pudesse ter acontecido comigo :( sou distraído o suficiente para me poder acontecer algo semelhante. Pelo menos assim o penso, mas talvez seja uma forma de entender o sofrimento e o sentimento de culpa que irá acompanhar aquele pai até ao fim dos seus dias...
Qto ao caso do jovem alemão, acho que todos nós, educadores, somos um pouco responsáveis pelo que acontece. Qtas vezes fechamos os olhos a sinais, a discriminações, aos problemas dos alunos pq tb temos problemas e nem sp estamos abertos para os deles?
Claro que os pais desempenham um papel fulcral, mas se agora a ministra até quer abrir as escolas 12h por dia, talvez essa responsabilidade passe a ser nossa a 100%...
Em relação ao Leitor, o melhor filme que vi este ano, mto melhor, na minha insignificante opinião, do que o 'Slumdog Millionaire'. A Kate é uma actriz fantástica e a história é contada com uma sensibilidade deliciosa.
Tou à espera do Perez-Reverte ;)
Bjs