07 fevereiro 2009

Mia Couto: e se Obama fosse africano?


Texto do escritor moçambicano Mia Couto. Desapaixonado, lúcido, e dorido. Elucidativo, também .. Não deixem de ler!

Os africanos rejubilaram com a vitória de Obama. Eu fui um deles. Depois de uma noite em claro, na irrealidade da penumbra da madrugada, as lágrimas corriam-me quando ele pronunciou o discurso de vencedor. Nesse momento, eu era também um vencedor. A mesma felicidade me atravessara quando Nelson Mandela foi libertado e o novo estadista sul-africano consolidava um caminho de dignificação de África.

Na noite de 5 de Novembro, o novo presidente norte-americano não era apenas um homem que falava. Era a sufocada voz da esperança que se reerguia, liberta, dentro de nós. Meu coração tinha votado, mesmo sem permissão: habituado a pedir pouco, eu festejava uma vitória sem dimensões. Ao sair à rua, a minha cidade se havia deslocado para Chicago, negros e brancos respirando comungando de uma mesma surpresa feliz. Porque a vitória de Obama não foi a de uma raça sobre outra: sem a participação massiva dos americanos de todas as raças (incluindo a da maioria branca) os Estados Unidos da América não nos entregariam motivo para festejarmos.

Nos dias seguintes, fui colhendo as reacções eufóricas dos mais diversos recantos do nosso continente. Pessoas anónimas, cidadãos comuns querem testemunhar a sua felicidade. Ao mesmo tempo fui tomando nota, com algumas reservas, das mensagens solidárias de dirigentes africanos. Quase todos chamavam Obama de "nosso irmão". E pensei: estarão todos esses dirigentes sendo sinceros? Será Barack Obama familiar de tanta gente politicamente tão diversa? Tenho dúvidas. Na pressa de ver preconceitos somente nos outros, não somos capazes de ver os nossos próprios racismos e xenofobias. Na pressa de condenar o Ocidente, esquecemo-nos de aceitar as lições que nos chegam desse outro lado do mundo.

Foi então que me chegou às mãos um texto de um escritor camaronês, Patrice Nganang, intitulado: " E se Obama fosse camaronês?". As questões que o meu colega dos Camarões levantava sugeriram-me perguntas diversas, formuladas agora em redor da seguinte hipótese: e se Obama fosse africano e concorresse à presidência num país africano? São estas perguntas que gostaria de explorar neste texto.

E se Obama fosse africano e candidato a uma presidência africana?

1. Se Obama fosse africano, um seu concorrente (um qualquer George Bush das Áfricas) inventaria mudanças na Constituição para prolongar o seu mandato para além do previsto. E o nosso Obama teria que esperar mais uns anos para voltar a candidatar-se. A espera poderia ser longa, se tomarmos em conta a permanência de um mesmo presidente no poder em África. Uns 41 anos no Gabão, 39 na Líbia, 28 no Zimbabwe, 28 na Guiné Equatorial, 28 em Angola, 27 no Egipto, 26 nos Camarões. E por aí fora, perfazendo uma quinzena de presidentes que governam há mais de 20 anos consecutivos no continente. Mugabe terá 90 anos quando terminar o mandato para o qual se impôs acima do veredicto popular.

2. Se Obama fosse africano, o mais provável era que, sendo um candidato do partido da oposição, não teria espaço para fazer campanha. Far-Ihe-iam como, por exemplo, no Zimbabwe ou nos Camarões: seria agredido fisicamente, seria preso consecutivamente, ser-Ihe-ia retirado o passaporte. Os Bushs de África não toleram opositores, não toleram a democracia.

3. Se Obama fosse africano, não seria sequer elegível em grande parte dos países porque as elites no poder inventaram leis restritivas que fecham as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes de imigrantes. O nacionalista zambiano Kenneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país, como filho de malawianos. Convenientemente "descobriram" que o homem que conduziu a Zâmbia à independência e governou por mais de 25 anos era, afinal, filho de malawianos e durante todo esse tempo tinha governado 'ilegalmente". Preso por alegadas intenções golpistas, o nosso Kenneth Kaunda (que dá nome a uma das mais nobres avenidas de Maputo) será interdito de fazer política e assim, o regime vigente, se verá livre de um opositor.

4. Sejamos claros: Obama é negro nos Estados Unidos. Em África ele é mulato. Se Obama fosse africano, veria a sua raça atirada contra o seu próprio rosto. Não que a cor da pele fosse importante para os povos que esperam ver nos seus líderes competência e trabalho sério. Mas as elites predadoras fariam campanha contra alguém que designariam por um "não autêntico africano". O mesmo irmão negro que hoje é saudado como novo Presidente americano seria vilipendiado em casa como sendo representante dos "outros", dos de outra raça, de outra bandeira (ou de nenhuma bandeira?).

5. Se fosse africano, o nosso "irmão" teria que dar muita explicação aos moralistas de serviço quando pensasse em incluir no discurso de agradecimento o apoio que recebeu dos homossexuais. Pecado mortal para os advogados da chamada "pureza africana". Para estes moralistas - tantas vezes no poder, tantas vezes com poder - a homossexualidade é um inaceitável vício mortal que é exterior a África e aos africanos.

6. Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o derrotado, num processo negocial degradante que mostra que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar aquilo que parece sagrado - a vontade do povo expressa nos votos. Nesta altura, estaria Barack Obama sentado numa mesa com um qualquer Bush em infinitas rondas negociais com mediadores africanos que nos ensinam que nos devemos contentar com as migalhas dos processos eleitorais que não correm a favor dos ditadores.

Inconclusivas conclusões

Fique claro: existem excepções neste quadro generalista. Sabemos todos de que excepções estamos falando e nós mesmos moçambicanos, fomos capazes de construir uma dessas condições à parte.

Fique igualmente claro: todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos.

A verdade é que Obama não é africano. A verdade é que os africanos - as pessoas simples e os trabalhadores anónimos - festejaram com toda a alma a vitória americana de Obama. Mas não creio que os ditadores e corruptos de África tenham o direito de se fazerem convidados para esta festa.

Porque a alegria que milhões de africanos experimentaram no dia 5 de Novembro nascia de eles investirem em Obama exactamente o oposto daquilo que conheciam da sua experiência com os seus próprios dirigentes. Por muito que nos custe admitir, apenas uma minoria de estados africanos conhecem ou conheceram dirigentes preocupados com o bem público.

No mesmo dia em que Obama confirmava a condição de vencedor, os noticiários internacionais abarrotavam de notícias terríveis sobre África. No mesmo dia da vitória da maioria norte-americana, África continuava sendo derrotada por guerras, má gestão, ambição desmesurada de políticos gananciosos. Depois de terem morto a democracia, esses políticos estão matando a própria política. Resta a guerra, em alguns casos. Outros, a desistência e o cinismo.

Só há um modo verdadeiro de celebrar Obama nos países africanos: é lutar para que mais bandeiras de esperança possam nascer aqui, no nosso continente. É lutar para que Obamas africanos possam também vencer. E nós, africanos de todas as etnias e raças, vencermos com esses Obamas e celebrarmos em nossa casa aquilo que agora festejamos em casa alheia.



postado por ana lima em 16/11/2008

11 comentários:

Anónimo disse...

Uma opinião extremamente lúcida e visionária sobre a realidade devastante que é África. Mas que coloca uma outra questão, esta de maior debate, porque estes são considerados "bonzinhos": e se Obama fosse europeu? Porque, se não se sabe dever-se-ia saber, na Europa há também corrupção. Esta, terrivel e infelizmente, abafada, nunca sabida. Não quero dizer que não haja algo de democrático nessa corrupção: esses pelo menos são eleitos pelo povo (será? A ler: "Clube dos Bilderberg", de Daniel Estulin, probido em Portugal), mas a questão da maioria absoluta é algo que me inquieta... Será isso democrático? Isto, claro, falando de Portugal. Mas vejamos Itália, por exemplo, com o seu Berlusconni ligado às máfias e com um património estimado de 2 mil milhões de euros. Como será que conseguiu? Obama, na América, vai ser um presidente que trará esperança para o país (e, esperemos, para o mundo), mas se fosse eleito num qualquer país europeu era apenas mais um a deixar-se atolar pela pseudo-democracia europeia em que se vive de momento em qualquer país da UE.
Domingo, 16 Novembro, 2008

Anónimo disse...

Concordo com o Tiago. Nós europeus, gostamos mto de olhar para Áfica de cima, como se a nossa civilização fosse mais evoluída. Apena o é pq consegue ser igualmente atroz e bárbara de uma forma subreptícia e dissimulada. Também li o 'Clube Bilderberg' e sei o qto o poder está podre, controlado por judeus e magnates. Mas mm assim, acho q a nossa cultura popular está doente, pela indiferença com q olhamos para a pobreza extrema e para o q se passa à nossa porta. Os 30.000 q morrem diariamente de pobreza extrema suscitam-nos pena, mas a indiferença e o q fazemos para o combater é nulo. Se Obama fosse candidato em portugal, não tenho a menor dúvida q seria mto mais atacado, vilipendiado e desrespeitado do q se fosse num qq outro país africano. Pq a maldade e o descontrole q está neste momento a assolar África fomos nós q o levámos desde o séc. XV...
Segunda-feira, 17 Novembro, 2008

Anónimo disse...

O problema é o mesmo de sempre: o Homem, do alto da sua arrogância e ouso dizer - ignorância - pensa que a terra e o poder lhe pertencem e esquece-se de que é pó; enquanto pó que vive, serve-se do ouro e das rédeas do poder que lhe é dado por outros como ele e aproveita para fazer a vida negra ao próximo em nome de uma pseudo justiça e mais outras mascaradas virtudes--- Ainda bem que Obama nem é africano, nem europeu nem europeu português; aí, sim, estava lixado!
Segunda-feira, 17 Novembro, 2008

Anónimo disse...

Pois... então, se bem entendo, restam-nos 3 oásis de democracia: os EU, já que Obama venceu lá as eleições, a Ásia, talvez liderada pelo acima-de-toda-a-suspeita modelo democrático chinês, e a Australásia (ñ é assim q agora se diz?)- vide a história recente de Timor, em que Austrália, Indonésia e EU deram ao mundo um exemplo de beatitude só comparável à da Madre Teresa. Do mais edificante!

E também já não alinho nessa da minha culpa primordial (a do ocidente e dos colonizadores) por todas as atrocidades que agora se continuam a cometer em África. Sei muito pouco da história anterior desse continente, mas pelo menos os Maias (q tb foram colonizados)tinham, ao que sei, alguns aspectos culturais bem sanguinários, antes de lá chegarem os espanhóis...
Às tantas somos é todos muito maus. Intrinsecamente, irremediavelmente maus, ruins de pura ruindade.
E não é q o Saramago vem sp à baila nestes filosofares?

A propósito, já estreou o filme 'Blindness' e eu, ainda assim, dou-me por muito, mas muito afortunada mesmo, por ser europeia. Mudava-me era ali para a vizinha Espanha, para não ir mais longe, mas isso são iberizações q ñ vêm ao caso.
Segunda-feira, 17 Novembro, 2008

Anónimo disse...

Ah, ainda uma coisita: em relação às maiorias absolutas, a cada dia que passa cresce a minha convicção: deviam ser proibidas.

Segunda-feira, 17 Novembro, 2008

Anónimo disse...

Voltando a citar Saramago, desta vez deixando em suas próprias palavras o seu discurso tão sucinto e tão dentro do que estavamos a falar (embora num campo um pouco mais alargado e ligeiramente à margem. Embora o intuito seja semelhante). Ficam então aqui as palavras de José Saramago http://www.youtube.com/watch?v=m1nePkQAM4w .

Concordo plenamente, não se pode viver aqui no ocidente em eterna auto-comiseração pelos erros dos nossos antepassados. Claro que sim, que faz "bem e é saudável" recordar para não se voltarem a cometer as mesmas atrocidades a favor da conquista imperial (está a ler senhor Bush? Vai ser deposto mas o recado fica!). Em relação há Ásia e à Australásia, esses davam textos demasiado compridos, os quais um dia destes escreverei, sem dúvida!, e depois enviarei para a professora :) Sim porque se Obama fosse chinês ou neozelandês o caso mudava de figura. Mas fica aqui a promessa de uma dedicação próxima à escrita do assunto. Cumprimentos a todos!
Segunda-feira, 17 Novembro, 2008

Anónimo disse...

Em relaçao ao que se disse sobre a nossa culpa de colonizadores queria acrescentar algo. É verdade que é ingenuidade culpar-nos pelos crimes que ainda se cometem em África.
Mas ainda é mais verdade que a colonizaçao desse continente nao acabou nunca. Veja-se a dívida externa, os acordos comerciais injustos que beneficiam o ocidente (e a ásia) e principalmente as "ajudas" que enviamos e que os impedem de seguir a sua própia evoluçao.

Por último gostaria de referir que os Maias foram exterminados pelos espanhois mais que colonizados, pelo que dizer antes tinham costumes sanguinários roça o politicamente incorrecto e, atrevo-me a dizer, a crueldade. A usar um exemplo que defenda que todos somos maus ainda que tenhamos sido derrotados (como povo e cultura) seria mais correcto usar o exemplo dos indios do Brasil que ainda existem e se podem defender.

P.S: parabéns pelo blog e aos alunos e professores (professora?)que nele participam. Ainda há educadores e educados em Portugal!


Terça-feira, 18 Novembro, 2008

Anónimo disse...

Politicamente incorrecta, roçando a crueldade, não queria, de todo... só acho que 'não teremos levado o pecado' ao paraíso, tipo maçã de Eva.
E quando sugiro que, se calhar somos todos maus, todos é todos mesmo: eu, tu, ele, nós, vós, eles


Terça-feira, 18 Novembro, 2008

Anónimo disse...

Por mto más que sejam as democracias, seja a nossa ou a dos EU, valem pela liberdade de expressão, como aqui se vê. É no debate de ideias, de argumentos, de reflexão e de oposição que se constrói o saber.
Parabéns Ana :)


Terça-feira, 18 Novembro, 2008

Anónimo disse...

Parabéns, Ana, por este espaço que nos permite não só conhecer o que vai acontecendo a nível das políticas e manifestações culturais, mas também a opinião de quem está atento e não desiste de pensar, opinar e assim de degrau em degrau enriquecer-se.

Parabéns também ao aluno Tiago que vem contrariar o que se vai dizendo sobre a nossa juventude.

Lucinda
Quarta-feira, 19 Novembro, 2008

Anónimo disse...

Agradeço muito os parabéns, mas "no, no, no!" (para ler ao ritmo de 'Rehab':-)) - assim lá se vai a polémica,não é?

Vamos voltar a África?

Pois é bem verdade, a colonização desse continente não acabou nunca, e é uma coisa que me revolta, claro! Mas...
1. agora é uma colonização com a conivência dos vários 'podres poderes' - instituídos, eternizados, milionários, alguns..

2. a colonização não está a ser mais ou menos generalizada? Não estamos nós, portugueses (só para dar 1 exemplo próximo)a ser 'colonizados' também? - cultural, economica, politicamente?

al

Quarta-feira, 19 Novembro, 2008