22 novembro 2010

Os filhos da Costa -2

Na escola, tornou-se uma figura, e aqui ganhou estatuto à parte. É assim há dois anos: incontrolável, independente, imprevisível, o próprio nome da ansiedade.
Dele me contam que se agarra às funcionárias aos beijos, em demonstrações inequívocas de carência de afectos, mas também que às vezes ‘cega’, e então bate, insulta, derruba …

Embora o conheça pouco, o Filipe lembra-me o personagem de “O Guarda da Praia”, romance que me foi recomendado pelo meu filho: a mesma inocência loira, uma notícia de dor, e aquela urgência absoluta de liberdade a não permitir amarras. Só que, infinitamente mais inatingível.
Por isso a escola, tacitamente, adaptou-se-lhe. Enquadra-o numa ilusão de pertença, e comodamente, mansamente para não exorcizar angústias, tolera-lhe a diferença sem nada mais lhe oferecer.
O Filipe aparece num jogo de marés, entra e sai de todas as salas quando lhe apetece, e desconfio, ninguém tem, sequer, a coragem de lho levar a mal.

De nós todos, penso que não espera nada, como não esperará nada de pessoa nenhuma. O Filipe é, simplesmente, e às vezes escolhe estar. Como o escorpião, cumpre o seu destino. Ou como Cristo, ou como um cometa.
A sua história constrói-se num turbilhão de separações e de violências. Tivesse ela uma cor, só poderia ser o vermelho. Muito escuro.

O Filipe incomoda, porque nos dá a medida exacta da nossa inépcia colectiva. Vemo-lo, e damo-nos conta de como somos impotentes, de como somos pequenos. Depois, é uma questão de ir deixando corroer. Aos poucos, apercebemo-nos de que o Filipe será talvez, apenas, o clone mais visível. Suspeitamos enfim, que se calhar até estamos a fazer tudo mal, ou que pelo menos não estamos a fazer o suficiente, e vem a angústia das discussões estéreis, das preocupações acessórias, do tempo perdido: o que temos feito no Conselho Pedagógico, no Conselho Directivo, nos Conselhos de Turma, nas Reuniões de Grupo, nas Salas das nossas Aulas, tudo tão importante (com maiúsculas, repararam?), tudo, afinal, tão nada.

Tudo, mas é, por culpa do Filipe. A bem da nossa sobrevivência, da nossa sanidade mental, o Filipe tem de ir embora. A Escola não dá resposta a estes casos. Paciência. E ponto final.



Ana Lima,
num ano (1999?) em que foi professora (acidental) dos Apoios Educativos, perdeu 15 quilos e chegou ao fim com uma profunda depressão.
.
o nome do aluno é ficcionado, o caso descrito não
a escola é uma EB 2,3 e o 'Filipe' andava no 5.º ou 6.º ano, já não me lembro ..


a imagem (esticada) é de Egon Schiele e dói-me quase tanto como, há anos, me doeu escrever este texto ..
.

Sem comentários: