in Jornal de Negócios, 12/11/2010
um óptimo artigo de Baptista Bastos (link para perfil/biografia).
"Não tenham vergonha de dizer que são pobres!
Não tenham vergonha de dizer que têm fome!"
Não tenham vergonha de dizer que têm fome!"
Estas pungentes exclamações foram proferidas pela médica Isabel do Carmo, no último "Prós e Contras" da RTP-1. Acrescentou que a questão fundamental é a do sistema, que está totalmente errado e que consigo arrasta um mar de miséria, de fome e de desespero. Aliás, um pouco por todo o lado o problema do capitalismo está a ser contestado (às vezes com extrema violência) e estudado nos seus múltiplos aspectos. No caso português, é um sistema roto e desvairado. Nas últimas décadas, os seus representantes políticos, o PS e o PSD, obedientes servis aos ditames e às normas, conduziram a nossa terra a uma situação intolerável. Não digo nada de novo. Só um deformado moral ou um mal-intencionado podem fazer o elogio deste estado de coisas.
Claro que o capitalismo tem encontrado sempre formas e fórmulas de, camaleonicamente, se adaptar às circunstâncias históricas, com pequenas cedências sociais que o vão mantendo. A força maior do capitalismo é essa quase infinita possibilidade de se respaldar no trabalho dos outros. A implosão do comunismo (e tomo o conceito "comunismo" com as maiores precauções e reservas) alargou, direi: endemicamente, o sistema vencedor. E este não soçobrará, tão cedo, exactamente porque o seu antagonista morreu às mãos dos seus próprios mantenedores.
Pouco ou nada é debatido, hoje, em Portugal. Os panegiristas do "mercado" entendem-no como sacrossanto, e os nossos escritores abandonaram-se às suas pequenas e lastimosas vidinhas, recolhendo-se a uma mediocridade social que contradiz as grandes tradições de intervenção da cultura portuguesa. Num livro a vários títulos notável, e cuja leitura vivamente recomendo, "Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos", Edições 70, Tony Judt, um dos mais importantes pensadores políticos contemporâneos, falecido há poucas semanas, adverte-nos para os perigos que nos ameaçam com um "sistema único" e ideário sem oposição intelectual. Chamo particularmente a atenção dos meus Dilectos para o capítulo "1989 e o Fim da Esquerda", que começa com esta axioma de Adam Michnik: "O pior do comunismo é o que vem a seguir."
O autor escreve: "Com o colapso [do comunismo] desfez-se toda a meada de doutrinas que durante mais de um século haviam ligado a Esquerda. Por mais pervertida que fosse a variação moscovita, o seu desaparecimento repentino e completo só podia ter uma repercussão desestabilizadora em qualquer partido ou movimento que se afirmasse 'social-democrata'. Essa era uma peculiaridade da política de Esquerda. Mesmo que todos os regimes conservadores e reaccionários do mundo implodissem amanhã, com a imagem pública irremediavelmente manchada pela corrupção e incompetência, a política do conservadorismo sobreviveria intacta. Os argumentos para 'conservar' continuam tão viáveis como sempre. Mas, para a Esquerda, a ausência de uma narrativa sustentada historicamente deixa um espaço vazio."
Apliquemos a Portugal (mas, também, ao resto do mundo) o conceito ideológico contido nesta admirável fórmula. Esvaziada do "inimigo principal", o caminho seria, inevitavelmente, o capitalismo, pois "pelos vistos, nada mais havia." Esta esquizofrenia impeliu os partidos "socialistas" a avançar por ínvias sendas, com o resultado que se conhece. A "terceira via" de Tony Blair não é, somente, um logro: é uma traição inominável, que conduziu ao apoio de um criminoso de guerra, W. Bush, e à pessoal abdicação do seu animador inglês. Adicione-se que Blair amealhou uma fortuna fabulosa, e os aplausos que lhe dirigiam apagaram-se na apagada e vil tristeza do seu destino.
Se havia algo de esquizofrénico na social-democracia pós Muro de Berlim, as apressadas solidariedades a que se comprometeu deram origem a outra esquizofrenia: a da Esquerda. Podemos aplicar estas reflexões ao caso português? Podemos e devemos. Quando Mário Soares meteu o "socialismo na gaveta" abria o armário a todas as solicitações e emboscadas. Mas ele sabia muito bem o que fazia. Arrependeu-se, mais tarde, tendo em conta as suas declarações e pronunciamentos posteriores, mas, na ocasião, já era incensado pela Direita mais retrógrada. Cavaco encontrou o caminho escancarado para todas as malfeitorias. E o surgimento de António Guterres, conhecido pelo Beato António, é a lógica decorrência de todos esses abandonos e negligências.
Sócrates é o produto típico desse clima de falsa euforia. Acontece que não sabe de ideologia e navega ao sabor dos ventos. Porém, as vítimas somos nós. Pedro Passos Coelho é um homem cordial, educado e ambicioso. Só isso. Não serve porque não adianta nem atrasa. Recomendo-lhe a leitura de qualquer texto de Tony Judt, e dos ensaios que "El Pais" tem publicado sobre o grande autor. Na Imprensa portuguesa não encontra. Que fazer? A alternância de poder (não alternativa) foi muito bem pensada e estruturada pelas classes dirigentes, as quais, no caso português, são das mais retrógradas e ancilosadas que se conhece.
Perguntará o Dilecto: então, não há nada a fazer? Há. Tudo está nas nossas mãos e na nossa inteligência.
b.bastos@netcabo.pt
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