13 novembro 2010

nas nossas mãos e na nossa inteligência.

 
in Jornal de Negócios, 12/11/2010
um óptimo artigo de Baptista Bastos (link para perfil/biografia)

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"Não tenham vergonha de dizer que são pobres! 
Não tenham vergonha de dizer que têm fome!"

Estas pungentes exclamações foram proferidas pela médica Isabel do Carmo, no último "Prós e Contras" da RTP-1. Acrescentou que a questão fundamental é a do sistema, que está totalmente errado e que consigo arrasta um mar de miséria, de fome e de desespero. Aliás, um pouco por todo o lado o problema do capitalismo está a ser contestado (às vezes com extrema violência) e estudado nos seus múltiplos aspectos. No caso português, é um sistema roto e desvairado. Nas últimas décadas, os seus representantes políticos, o PS e o PSD, obedientes servis aos ditames e às normas, conduziram a nossa terra a uma situação intolerável. Não digo nada de novo. Só um deformado moral ou um mal-intencionado podem fazer o elogio deste estado de coisas.

Claro que o capitalismo tem encontrado sempre formas e fórmulas de, camaleonicamente, se adaptar às circunstâncias históricas, com pequenas cedências sociais que o vão mantendo. A força maior do capitalismo é essa quase infinita possibilidade de se respaldar no trabalho dos outros. A implosão do comunismo (e tomo o conceito "comunismo" com as maiores precauções e reservas) alargou, direi: endemicamente, o sistema vencedor. E este não soçobrará, tão cedo, exactamente porque o seu antagonista morreu às mãos dos seus próprios mantenedores.

Pouco ou nada é debatido, hoje, em Portugal. Os panegiristas do "mercado" entendem-no como sacrossanto, e os nossos escritores abandonaram-se às suas pequenas e lastimosas vidinhas, recolhendo-se a uma mediocridade social que contradiz as grandes tradições de intervenção da cultura portuguesa. Num livro a vários títulos notável, e cuja leitura vivamente recomendo, "Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos", Edições 70, Tony Judt, um dos mais importantes pensadores políticos contemporâneos, falecido há poucas semanas, adverte-nos para os perigos que nos ameaçam com um "sistema único" e ideário sem oposição intelectual. Chamo particularmente a atenção dos meus Dilectos para o capítulo "1989 e o Fim da Esquerda", que começa com esta axioma de Adam Michnik: "O pior do comunismo é o que vem a seguir."

O autor escreve: "Com o colapso [do comunismo] desfez-se toda a meada de doutrinas que durante mais de um século haviam ligado a Esquerda. Por mais pervertida que fosse a variação moscovita, o seu desaparecimento repentino e completo só podia ter uma repercussão desestabilizadora em qualquer partido ou movimento que se afirmasse 'social-democrata'. Essa era uma peculiaridade da política de Esquerda. Mesmo que todos os regimes conservadores e reaccionários do mundo implodissem amanhã, com a imagem pública irremediavelmente manchada pela corrupção e incompetência, a política do conservadorismo sobreviveria intacta. Os argumentos para 'conservar' continuam tão viáveis como sempre. Mas, para a Esquerda, a ausência de uma narrativa sustentada historicamente deixa um espaço vazio."

Apliquemos a Portugal (mas, também, ao resto do mundo) o conceito ideológico contido nesta admirável fórmula. Esvaziada do "inimigo principal", o caminho seria, inevitavelmente, o capitalismo, pois "pelos vistos, nada mais havia." Esta esquizofrenia impeliu os partidos "socialistas" a avançar por ínvias sendas, com o resultado que se conhece. A "terceira via" de Tony Blair não é, somente, um logro: é uma traição inominável, que conduziu ao apoio de um criminoso de guerra, W. Bush, e à pessoal abdicação do seu animador inglês. Adicione-se que Blair amealhou uma fortuna fabulosa, e os aplausos que lhe dirigiam apagaram-se na apagada e vil tristeza do seu destino.

Se havia algo de esquizofrénico na social-democracia pós Muro de Berlim, as apressadas solidariedades a que se comprometeu deram origem a outra esquizofrenia: a da Esquerda. Podemos aplicar estas reflexões ao caso português? Podemos e devemos. Quando Mário Soares meteu o "socialismo na gaveta" abria o armário a todas as solicitações e emboscadas. Mas ele sabia muito bem o que fazia. Arrependeu-se, mais tarde, tendo em conta as suas declarações e pronunciamentos posteriores, mas, na ocasião, já era incensado pela Direita mais retrógrada. Cavaco encontrou o caminho escancarado para todas as malfeitorias. E o surgimento de António Guterres, conhecido pelo Beato António, é a lógica decorrência de todos esses abandonos e negligências.

Sócrates é o produto típico desse clima de falsa euforia. Acontece que não sabe de ideologia e navega ao sabor dos ventos. Porém, as vítimas somos nós. Pedro Passos Coelho é um homem cordial, educado e ambicioso. Só isso. Não serve porque não adianta nem atrasa. Recomendo-lhe a leitura de qualquer texto de Tony Judt, e dos ensaios que "El Pais" tem publicado sobre o grande autor. Na Imprensa portuguesa não encontra. Que fazer? A alternância de poder (não alternativa) foi muito bem pensada e estruturada pelas classes dirigentes, as quais, no caso português, são das mais retrógradas e ancilosadas que se conhece.

Perguntará o Dilecto: então, não há nada a fazer? Há. Tudo está nas nossas mãos e na nossa inteligência.


b.bastos@netcabo.pt

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